São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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VINICIUS TORRES FREIRE

Preguiça "desgramada" e outras gafes

SÃO PAULO - Para as crianças, ler é tão desanimador como as caminhadas para os adultos sedentários: "dá uma preguiça "desgramada'", disse o presidente Lula da Silva ao inaugurar a Bienal do Livro de São Paulo.
Lula não lê mais de duas páginas de relatórios, dizem assessores, gosta de piscina, churrasquinho, pelada e música sertaneja, samba, suor e cerveja. Não deixa, pois, de ter razão o realismo pedestre de Lula sobre a leitura. Preconceito? Não é o caso.
O presidente não é deus, como alertou, mas gosta de ser a voz do povo, um megafone de hábitos, trejeitos, preconceitos, utopias e até sabedorias populares. Tanto faz, a princípio, que Lula seja assim. O problema é que ele não consegue transcender seu realismo pedestre a fim de desempenhar o papel público de presidente, de transmitir uma visão mais racional e elaborada sobre as questões públicas. Limita-se às metáforas chãs, tem amor pelas mezinhas, pelas alegorias da vida de peão, sobre o companheiro que leva bronca da patroa por ter parado no botequim para a cervejinha.
Esse bestiário da vida operária não dá conta do debate democrático, o metaforismo popular não é capaz de traduzir questões de governo para o povo pobre. É apenas demagogia, talvez não intencional: Lula é o que parece ser. Transmite seus preconceitos sem pejo ou mesmo consciência do que faz, como no caso da gafe sobre a leitura e tantas outras.
Depois de tal gafe, veio o complemento habitual dos discursos de Lula: tal e qual problema é grave, mas "temos de ter políticas", no caso "para garantir que a criança adquira o prazer de leitura". Tal como um Policarpo Quaresma ou um Quincas Borba operários, Lula tem espasmos freqüentes de palanquismo salvacionista, de criar emplastros cura-tudo, de planos para redimir a república.
Já vimos os falidos Fome Zero, Primeiro Emprego, bolsa-fogão e tantos outros. Agora, Lula quer criar frentes de trabalho, engajar recrutas para dar-lhes uma profissão para a qual não haverá emprego. Quando Lula convocará os sem-terra para construir pirâmides keynesianas?
Isso é Lula, apenas um homem só. Mas que país é esse em que um governo tanto pode ser a encarnação dos modos desse homem?


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