São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O carrinho de mão

RIO DE JANEIRO - Sempre ouvi dizer que a roda foi a maior invenção da humanidade. Ela quebrou inúmeros galhos de todos nós, e um dos mais importantes foi a invenção do carrinho de mão. Para transportar alguém ou alguma coisa de peso e tamanho relevantes, eram necessários, no mínimo, dois homens, um na frente, outro atrás.
Um iluminado qualquer colocou uma roda na frente e um homem sozinho poderia levar qualquer um ou qualquer coisa de um lugar para outro. Economizava-se um homem.
Em criança, eles me fascinavam e, quando encontrava algum abnegado com um deles vazio, pedia para dar uma volta. Já andei em aviões supersônicos e até em Rolls-Royces de amigos, mas nunca tive o mesmo prazer.
A admiração pelos carrinhos de mão ficou estremecida, na semana passada, quando vi a foto do cadáver de um homem sendo transportado por um deles. Acho que se tratava de um traficante da Rocinha ou de mais uma vítima de bala perdida, "causa mortis" que substitui com folga a febre amarela e a tuberculose de outros tempos.
Em filmes divulgados após a queda do nazismo, já vira cadáveres em carroças e vagões a caminho dos fornos crematórios. Mas as carroças eram puxadas por animais, e os vagões, por locomotivas, não por um homem, em tudo igual ao homem transportado, com a diferença de um estar em pé, e outro, deitado, de borco, como um pedaço de carne ensanguentada. Consumimos, com resignada tranqüilidade, o que ela expressou: a violência nossa de cada dia, a banalidade da morte.
Na Guerra do Vietnã, correu mundo a foto do oficial que encostou sua arma na cabeça de um jovem e atirou. Era uma cena de guerra naquilo que os jornais chamavam de "sudeste asiático". O carrinho de mão estava longe. Deve agora estar em algum canto da Rocinha, aqui pertinho da Lagoa, onde moro. Vazio, esperando talvez carga igual.


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