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CARLOS HEITOR CONY
O carrinho de mão
RIO DE JANEIRO - Sempre ouvi dizer que a roda foi a maior invenção da
humanidade. Ela quebrou inúmeros
galhos de todos nós, e um dos mais
importantes foi a invenção do carrinho de mão. Para transportar alguém ou alguma coisa de peso e tamanho relevantes, eram necessários,
no mínimo, dois homens, um na
frente, outro atrás.
Um iluminado qualquer colocou
uma roda na frente e um homem sozinho poderia levar qualquer um ou
qualquer coisa de um lugar para outro. Economizava-se um homem.
Em criança, eles me fascinavam e,
quando encontrava algum abnegado
com um deles vazio, pedia para dar
uma volta. Já andei em aviões supersônicos e até em Rolls-Royces de amigos, mas nunca tive o mesmo prazer.
A admiração pelos carrinhos de
mão ficou estremecida, na semana
passada, quando vi a foto do cadáver
de um homem sendo transportado
por um deles. Acho que se tratava de
um traficante da Rocinha ou de mais
uma vítima de bala perdida, "causa
mortis" que substitui com folga a febre amarela e a tuberculose de outros
tempos.
Em filmes divulgados após a queda
do nazismo, já vira cadáveres em
carroças e vagões a caminho dos fornos crematórios. Mas as carroças
eram puxadas por animais, e os vagões, por locomotivas, não por um
homem, em tudo igual ao homem
transportado, com a diferença de um
estar em pé, e outro, deitado, de borco, como um pedaço de carne ensanguentada. Consumimos, com resignada tranqüilidade, o que ela expressou: a violência nossa de cada dia, a
banalidade da morte.
Na Guerra do Vietnã, correu mundo a foto do oficial que encostou sua
arma na cabeça de um jovem e atirou. Era uma cena de guerra naquilo
que os jornais chamavam de "sudeste
asiático". O carrinho de mão estava
longe. Deve agora estar em algum
canto da Rocinha, aqui pertinho da
Lagoa, onde moro. Vazio, esperando
talvez carga igual.
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