São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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JOSÉ SERRA

O impasse

Parece que os Estados Unidos nunca se encrencaram tanto em suas guerras externas quanto agora no Iraque. A conquista de metade do território mexicano no século 19 foi bem-sucedida, como o foram também as invasões das Filipinas e de Cuba na virada do século 20. Nas duas guerras mundiais, os norte-americanos foram os principais vencedores. A guerra da Coréia não foi nem perdida nem vencida e foi travada sob o dístico das Nações Unidas.
No Vietnã, a derrota foi vexaminosa, mas a guerra começou com uma justificativa então plausível (embora errada): teoria do dominó. A intervenção destinava-se a impedir que mais um país virasse comunista, derrubando em seguida outras pedras vizinhas. O envolvimento norte-americano, além disso, foi gradual, sem uma guerra inicial em grande escala. A retirada não teve grandes conseqüências.
No Iraque, as coisas são bem diferentes. A invasão teve pretextos falsos, não se confirmando a suposta existência de grandes estoques de armas de destruição em massa. O tirano Saddam Hussein tampouco tinha relações com a rede terrorista de Bin Laden. O envolvimento direto dos Estados Unidos não foi gradual, começando, pelo contrário, com uma invasão maciça por terra, mar e ar. E sofreu a oposição de países aliados de grande peso, como a Alemanha e a França, e até de países economicamente atados aos Estados Unidos, como o Chile e o México. Conseguiu atrair tropas de alguns parceiros, mas, com exceção das britânicas, em número insignificante.
De fato, o conflito com o Iraque é essencialmente uma guerra dos Estados Unidos. Guerra contra quem, exatamente? Saddam foi derrubado, preso e exibido nas TVs de todo o mundo sob o efeito de drogas. Seus filhos e herdeiros políticos foram assassinados. O regime despótico de Saddam desmanchou-se. E agora?
O terrorismo mundial parece ter-se fortalecido e, no Iraque, tendências muçulmanas antes antagônicas começam a unir-se contra os invasores. São dezenas de milhões de pessoas que, no mínimo, vêem com antipatia a presença das tropas estrangeiras e dezenas de milhares que estão pegando nas armas de que dispõem para enfrentar os ocupantes. Paralelamente, aumenta o antiamericanismo em todo o mundo árabe.
A esta altura, o dilema para o governo americano não é fácil. Aprofundar a ocupação, deslocando mais tropas e intensificando os bombardeios, dirigiria os ataques, cada vez mais, contra a população civil, elevaria os custos em vidas e em recursos, produziria um país muito mais hostil e aumentaria o isolamento internacional dos Estados Unidos. Ganham-se guerras contra exércitos, mas não contra povos que se levantam aos milhões.
Por outro lado, sair precipitadamente do Iraque, deixando-o acéfalo e devastado, poderia desencadear uma guerra civil, além de provocar levantes de curdos e a intervenção de tropas turcas e iranianas. E isso desestabilizaria ainda mais o mercado internacional de petróleo, para não falar da desmoralização dos Estados Unidos no contexto árabe e mundial e dos riscos que correriam governos pró-ocidentais, como o da Arábia Saudita.
O único resultado positivo desse quadro dramático poderá ser a derrota de Bush na eleição. Ainda assim, vitorioso, Kerry encontrará no impasse iraquiano o maior desafio de seu governo. Seu plano está na linha do "third best": fugir do dilema envolvendo as Nações Unidas. Trata-se de uma estratégia mais fácil de propor numa campanha do que de aplicar no futuro.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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