São Paulo, quarta-feira, 19 de abril de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O clima de punibilidade seletiva

ROMEU TUMA

Meio século de contato direto com casos criminais mostrou-se insuficiente para me insensibilizar diante da hipocrisia de Suzane Louise Richthofen na televisão. A repulsa igualou-se à que perpassou a população e o aparelho judiciário, tanto que a farsa produziu resultado inverso ao desejado pelos defensores da ré. Isto é, Suzane está novamente sob prisão preventiva decretada pela Justiça.
Tamanha repercussão negativa fez o presidente da OAB-SP, criminalista Luiz Flávio Borges D'Urso, instaurar sindicância sobre a posição dos dois advogados orientadores da "entrevista". Ameaça alcançá-los com penalidades do Código de Ética da entidade.


O caso Richthofen é semelhante a outros em que se espera o cometimento de mais crimes para, só então, parar o criminoso


Mas a farsa também teve o dom de reforçar repetidos alertas de juristas e autoridades para a celeridade com que se está deteriorando o sistema penal. A que ponto precisamos chegar para ver a assassina confessa dos próprios pais -engenheiro Manfrede e psiquiatra Marísia Von Richthofen- voltar à cadeia, apesar de incursa em todas as agravantes penais. O espanto é maior ainda porque o fato reedita algo semelhante ocorrido com os comparsas, irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva, também encarcerados novamente, há pouco tempo, em seguida a um desavergonhado contato com a imprensa.
Ambos os episódios agridem a lógica, o bom senso e a segurança pública. Mostram a incoerência em manter soltos réus confessos de um crime bárbaro para só os apartar da sociedade se zombarem do sentimento alheio. Ficassem quietos, continuariam à solta, aptos para novos atos delituosos. Portanto, na prática, até as mais pesadas penas reservadas pelo Código Penal aos piores criminosos já podem ser substituídas pela alternativa de o delinqüente simplesmente manter discrição. Recurso legal, embora imoral.
O caso Richthofen mostra-se emblemático porque configura regra, não exceção. É semelhante a outros em que se espera o cometimento de mais crimes para, só então, parar o criminoso reincidente e demonstrar tardio cuidado com a prevenção em prol da segurança dos cidadãos.
Hoje, o menosprezo pelas atitudes preventivas poderá ser ampliado, se o Supremo Tribunal Federal conceder quatro "habeas corpus" incluídos em sua pauta de julgamentos -casos que, em si, não têm importância maior, mas que podem ter conseqüências cruciais. Com isso, reforçaria de vez aquele entendimento. Poderia inviabilizar a punição. E, depois, como fazer justiça?
Os advogados impetrantes desses "habeas corpus" sustentam a impossibilidade de seus clientes irem para a cadeia enquanto não esgotarem todas as possibilidades de recurso, mesmo que a prisão tenha sido determinada em segunda instância, ou seja, pelos Tribunais de Justiça estaduais ou pelos Tribunais Regionais Federais.
Parece que a interpretação radical de que ninguém é culpado até sentença definitiva está prestes a chegar às últimas conseqüências. Sabe-se que a tendência dominante no STF é pela concessão da medida. Caso isso aconteça, a mais alta corte do Judiciário coonestará o esdrúxulo entendimento de que toda prisão decorrente de condenação até em instância superior constitui atentado contra a "liberdade de locomoção" do réu. Seria "abuso de poder" ou "ilegalidade", resultante de "coação" ou "violência" contra o condenado.
O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles sintetiza o que surge à vista. Ministros e ex-ministros do STF partilham a mesma opinião, isto é, estabelecida jurisprudência do Supremo mediante a concessão daqueles "habeas corpus", advogados de todo o país passarão a apresentar recursos e mais recursos, num verdadeiro "festival de prescrição e impunidade". Ressaltam entender que, confirmada a condenação em instância mais elevada, a execução da pena privativa de liberdade deva ser imediata.
Na verdade, o que se objetiva é retardar o cumprimento das penas. Com as desmedidas possibilidades de recurso existentes e o grande volume de processos pendentes de julgamento em todos os níveis, será fácil adiar a prisão por muitos anos, com garantia de liberdade e expectativa de prescrição.
Também sob esse prisma, o caso Richthofen é exemplar. Seus ingredientes dão-nos a dimensão do motor que impulsiona a criminalidade violenta. A desfaçatez desses homicidas rivaliza com a de quem, sob o manto das atitudes implacáveis contra delinqüentes de menor ou quase nenhum poder ofensivo, despreza a evidente realidade para deixar impunes os grandes criminosos.
Por exemplo, enquanto Suzane gozava a vida num balneário praiano e intentava apoderar-se da fortuna deixada pelas vítimas, uma humilde doméstica de 18 anos de idade permaneceu presa durante 128 dias, em São Paulo, após furtar um pote de 200 gramas de manteiga, no valor de R$ 3,10, com que pretendia alimentar o filho de colo. Victor Hugo poderia relatar sua desdita em um novo "Os Miseráveis".
Devemos dar um basta a tal clima de punibilidade seletiva, dirigida aos desprovidos de recursos até para contratar advogado. O STF tem hoje oportunidade de dar esse importante passo.

Romeu Tuma, 74, é senador (PFL-SP). Foi diretor-geral da Polícia Federal (1985-92) e secretário da Receita Federal (1992).


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