São Paulo, segunda-feira, 19 de maio de 2008

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O ano do urso

2008 pode ficar marcado como a data em que o aquecimento global causado pelo homem se tornou patente

URSOS POLARES que se tornam canibais, premidos pela escassez de presas no gelo ártico em retração acelerada, constituem um emblema concreto da mudança climática. Não por acaso, a espécie (Ursus maritimus) acaba de ser oficialmente declarada, pelo governo dos Estados Unidos, sob ameaça de extinção. Mas há muito mais desses riscos entre o céu, o mar e a terra do que sonhava a nossa climatologia.
Os exemplos são vários e conhecidos. Proliferam mudanças na época de floração, anunciando primaveras mais e mais precoces. Fases de crescimento de animais em 19 países estão em desarranjo. Geleiras nas montanhas começam a derreter mais cedo, antecipando o pico caudaloso de rios -cada vez mais tépidos, assim como lagos.
Apesar de conhecidos, tais fenômenos eram relacionados quase anedoticamente ao aumento da temperatura da atmosfera resultante da queima de combustíveis fósseis (aquecimento global). Isso até uma equipe do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa e de outros centros de pesquisa, coordenados por Cynthia Rosenzweig, resolver testar uma vinculação mais robusta.
O grupo recorreu à ferramenta, comum na literatura médica, da meta-análise. Trata-se de reunir todas as pesquisas já publicadas que obedeçam a certos requisitos e então dar-lhes tratamento estatístico padronizado. Rosenzweig analisou mais de 29.500 séries de dados sobre essas alterações de sistemas naturais e publicou os resultados no periódico científico "Nature".
Nove em cada dez observações se revelaram compatíveis com as alterações previstas em decorrência do aquecimento da atmosfera. No caso das 829 mudanças físicas documentadas, como desaparecimento de geleiras, a concordância chegou a 95%. Nas de sistemas biológicos, como os ursos canibais, 90% de cerca de 28 mil estudos indicaram a elevação de temperatura pela mão do homem como única explicação coerente.
O trabalho padece, por certo, de uma série de limitações. Só foi possível reunir dados para o período 1970-2004; mais confiáveis seriam séries de 50-100 anos. A distribuição das observações se concentra na Europa e na América do Norte; da África, foram usadas apenas 14.
Apesar disso, a quantidade inédita de estudos ponderados na meta-análise e a alta correlação convenceram os revisores críticos da pesquisa. "Concluímos que a mudança climática antropogênica está exercendo um impacto significativo nos sistemas físicos e biológicos, globalmente e em alguns continentes", escrevem os autores, com ênfase rara nesse gênero de artigo.
Entre cientistas profissionais ainda há poucos a pôr em dúvida a influência humana sobre o aquecimento global. Com o trabalho de Rosenzweig, aliado ao nível mais alto de gases do efeito estufa nos últimos 800 mil anos, encontrarão cada vez menos ouvidos, na esfera pública, para o seu ceticismo.


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