São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

De grão em grão

RIO DE JANEIRO - Alguma coisa ainda não foi dita a respeito da recente viagem presidencial à China, cujo resultado mais imediato e fulminante foi o embargo da soja exportada do Brasil para o colosso asiático.
Houve tempo em que um carregamento de café em pó foi periciado numa alfândega européia e descobriu-se que havia sangue de boi torrado e moído em mistura com a chamada preciosa rubiácea. Tirante nosso futebol, que é aceito como legítimo, até os travestis brasileiros que chegam a Hamburgo, Paris e Milão volta e meia são desmascarados. Não faz muito, um filipino foi recambiado porque se dizia natural do Ceará.
Nunca houve tamanha comitiva de empresários e tamanhas louvações à diplomática investida do governo para aumentar nosso comércio com os 2 bilhões e quebrados de chineses. O petardo comercial explodiu feio, desmentindo as avaliações otimistas despejadas pelos interessados.
É evidente que não se deve invocar a lei da causalidade, ou seja, atribuir o embargo diretamente à visita presidencial, na tradicional relação de causa e efeito. Mas não deixa de ser estranho que o caso tenha sido criado em cima do lance, quando as bandeirinhas do Brasil nem haviam sido retiradas das ruas de Pequim.
A simpatia e o carisma pessoal de nosso presidente parece que não funcionaram além das reuniões e conversas formais do protocolo. Desgaste da imagem de Lula no plano internacional? Muito cedo para isso. Ele tem gás suficiente para atravessar o primeiro mandato, se é que chega realmente ao segundo.
Na quarta-feira, o presidente foi obrigado a descumprir o cerimonial ao receber autoridade estrangeira. Não desceu a rampa, preferindo saída mais modesta, acho que pela garagem. Com isso, evitou o constrangimento de ser vaiado por uma multidão que promovia seu enterro simbólico. De grão em grão, em soja ou em prestígio interno, os ventos estão mudando para os lados do Lula-lá.


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