São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A esquerda tem um projeto alternativo ao neoliberalismo?

SIM

A alternativa da esquerda

PAUL SINGER

É claro que a esquerda tem um projeto alternativo ao neoliberalismo. A tese de que a esquerda não o tem é, em si mesma, o argumento final do neoliberalismo. Quando os evidentes malefícios do neoliberalismo -a falta de crescimento econômico, o desemprego em massa e crônico, a multiplicação de novos pobres, o crescimento da violência e do crime organizado etc.- revelam-se irrefutáveis, surge o derradeiro: não há alternativa.
O projeto alternativo ao neoliberalismo começa por negar o pseudodilema crescimento x inflação, ao menos em sua pretensa generalidade. A experiência histórica e a boa teoria econômica mostram que a aceleração do crescimento da economia, enquanto houver ponderável ociosidade da força de trabalho e do capital físico, reduz as pressões inflacionárias, porque ela aumenta as economias de escala e, portanto, diminui os custos de produção, permitindo vender a preços menores.
Apenas quando o crescimento enfrenta sérios pontos de estrangulamento, cuja abertura leva tempo, é aconselhável moderar o ritmo de expansão econômica para evitar que o excesso de demanda pressione os preços para cima. Mas, ao mesmo tempo em que esfria a economia, o Estado deve providenciar os investimentos necessários para abrir os pontos de estrangulamento, tendo em vista a retomada do crescimento intenso no menor prazo.
Conseqüentemente, a política fiscal e monetária deve ter por objetivo prioritário a geração de trabalho e renda. E no menor prazo possível, pois os desempregados e carentes não podem esperar (os neoliberais dizem que perseguem o mesmo objetivo, só que no longo prazo. A esse respeito, Keynes disse que "no longo prazo estaremos todos mortos").
O projeto da esquerda sustenta que o governo deve ser responsável pelo ritmo de crescimento econômico, pelo fomento da economia nas regiões mais pobres, pela redistribuição da renda como forma de luta contra a pobreza e pelo pleno emprego.
O combate à pobreza requer a distribuição, pelo Estado, tanto de renda como de capital. O ideal seria um seguro contra a pobreza, na forma de uma renda cidadã que garantisse a todos os residentes no país um consumo mínimo decente. Enquanto não se logra isso, são necessários programas de transferência de renda aos mais carentes, tendo em vista prevenir formas degradadas de trabalho -mendicância, prostituição, trabalho infantil, escravo- e a miséria.
Além disso, o poder público deve prover capital a todos os que queiram empreender, sobretudo aos pobres, mediante reforma agrária, entrega de empresas em crise aos empregados que queiram recuperá-las e múltiplas formas de microcrédito e finanças solidárias. Uma das principais formas de garantir o pleno emprego é oferecer, a todos que queiram, a oportunidade de criar o seu próprio emprego, sozinho ou em associação com outros. Hoje, essa oportunidade se limita aos que têm capital próprio ou podem oferecer garantias a bancos para obter financiamentos. Para estender essa oportunidade aos pobres, o Estado deve promover um sistema financeiro primordialmente dedicado a esse fim.
O projeto da esquerda propõe que o Estado crie os instrumentos necessários à implementação dessas políticas, entre os quais avulta o controle dos fluxos de capital para dentro e para fora do país. Isso é imprescindível para dar ao Estado independência em relação aos detentores de capital líquido. Não há economia nacional que possa resistir a uma fuga de capitais de grande proporção. Não instituir tal controle equivale a conferir ao grande capital, nacional e transnacional, poder de veto contra qualquer política pública que considere prejudicial a seus interesses.
Finalmente, o projeto da esquerda propõe que os poderes públicos federais, estaduais e municipais apóiem a economia solidária, como instrumento de desenvolvimento das comunidades e de democratização da economia. Nos empreendimentos solidários não há divisão de classes, porque os que possuem o capital e os que executam o trabalho são os mesmos.
Formas autogestionárias de produção, de poupança, de empréstimo e de consumo criam, dentro da sociedade capitalista, espaços de democracia e igualdade social e econômica. Espaços que demonstram concretamente que outra sociedade é possível e quais são as vantagens e desvantagens dessa nova sociedade em relação à existente -o que dá aos cidadãos o poder de escolher em que sociedade desejam viver e, inclusive, a possibilidade de experimentar alternadamente a vida na economia capitalista e na solidária.
Em tempo: na esquerda há -felizmente- diversos projetos alternativos ao neoliberalismo, vários dos quais já estão sendo construídos em diversos países, inclusive no Brasil. O que apresento acima é minha visão dos aspectos mais importantes de um possível projeto de esquerda.


Paul Singer, 72, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador do Cebrap, é secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho.


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