São Paulo, sábado, 19 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A esquerda tem um projeto alternativo ao neoliberalismo?

NÃO

É preciso coragem

ROBERTO ROMANO

Alternativa da esquerda ao neoliberalismo? Difícil, se recordarmos os governos gerados nos laboratórios da esquerda contemporânea. Existem mais vínculos entre setores esquerdistas e o pensamento conservador do que é possível confessar. Diz Alain Rey: "Na vida social, as palavras novas servem para dissimular uma intenção ou um ato bem real (...) Ao lado de seu significado objetivo, elas transmitem intentos que podem ser manipuladores" ("Le Monde", 28/1/98).
"Esquerda" e "neoliberalismo" são noções e realidades múltiplas. Em língua hegeliana, elas constituem universais abstratos (só esclarecem parte do que indicam, escondem o que não interessa revelar) ou "termos embreagem" (E. Benveniste), que servem para continuar discursos sem provas lógicas ou empíricas.
Termos embreagem povoam o setor ideológico. Exemplos são as frases vazias sobre "vontade política". Arengas partidárias usam aquele refrão para atacar adversários ou defender o inconfessável. "Esquerda" e "neoliberalismo" integram universos terminológicos apinhados de noções embreagem. No seu uso, ouvinte e falante comungam certezas religiosas. Há um outro lingüista, Jean-Pierre Faye, que mostra a permanente passagem dos termos produzidos na esquerda que são torcidos para a direita e vice-versa. Faye refere-se ao fenômeno como "a ferradura ideológica".
Ao parolar sobre o "neoliberalismo" durante anos e anos, muitos petistas sentiram-se justificados na sua "luta", o "resgate da ética e da cidadania"... Poucos tentaram ler e analisar as bases teóricas daqueles termos, e a maior parte repetiu slogans sobre o tema. No poder, os mesmos petistas se refestelam com receitas macroeconômicas que ontem diziam abominar. Mas o vazio de sua linguagem retoma o antigo vácuo especulativo "de esquerda", agora com sotaque realista. Sobra o autoritarismo que não muda e repete chavões, só que em sentido contrário.
O paradigma da esquerda no século 20 foi gerado pela Revolução Russa. Dadas as dificuldades trazidas durante a guerra e no próprio movimento revolucionário, a saída leninista foi a NEP (Nova Política Econômica) de 1921: "Eis os fatos. A Rússia está ameaçada pela fome. Todo o sistema do comunismo de guerra entrou em colisão com os interesses dos camponeses (...) É possível restabelecer de certo modo a liberdade de comércio? É uma questão de medida. Podemos voltar atrás sem destruir a ditadura do proletariado". (Lênin, no 10º Congresso do PC). O Retorno "comedido" ao mercado salva o poder esquerdista. Capitais estrangeiros, inclusive norte-americanos, adquirem "confiança" no Estado russo e aplicam recursos em obras de infra-estrutura. Não lembra muito uma realidade vivida em nossos tempos?
Em 1930, Stálin acaba com a NEP e fulmina o debate entre os trotskistas e a ala direita do partido. Stálin vence e promove a indústria, mas com o socialismo num só país. Surgem os planos qüinqüenais e o papel dirigente do Estado na economia, com inaudita produção tecnológica. É o tempo de "o homem, o capital mais precioso". O "capital" precisava ser preparado, donde a campanha para alfabetizar as massas: o número de analfabetos deixa de ser 72% e se reduz a 19% do povo, de 1919 até 1940. Êxitos surgem em colheitas, novas fábricas, aumento de energia elétrica. Estava pronto o modelo "comunista".
Recrudesceram os ataques às oposições, as capturas, os cortes na imprensa, os campos de concentração, os processos infames num Judiciário de fancaria, o culto à personalidade. Foi revigorada a teoria das "etapas" históricas a serem seguidas pelos países pobres, numa seqüência dogmática alimentada por cegueira ideológica e bajulação. Lyssenko é prova dessa insânia. Mumificando-se Lênin, o corpo do socialismo também foi embalsamado. Começou a longa noite que levou à implosão soviética.
A antiga esquerda social-democrata assumiu em tempos alternados os governos da Alemanha, da França, da Inglaterra, da Espanha e de Portugal. O modelo soviético nunca lhe serviu. Os partidos socialistas governaram segundo uma lenta adaptação aos mercados, no exato momento em que várias doutrinas, que desejavam diminuir ao máximo o poder de Estado na economia, passaram a controlar organismos financeiros internacionais. Enquanto a ortodoxia soviética havia congelado cérebros, setores de esquerda tentavam retomar o debate anterior ao modelo burocrático estatal. Na ausência do imenso partido único, uma pletora de movimentos procurou imaginar o que seria um socialismo democrático e também eficaz no plano econômico.
Hoje a esquerda não possui novos modelos para opor ao paradigma stalinista nem aos liberalismos. Ou ela os produz, mas para isso é preciso muita coragem, cultura e imaginação produtiva, ou perece no abraço histórico com seus oponentes. Pelo que se enxerga no Brasil, o governo de esquerda escolheu a segunda via. Que as demais esquerdas aceitem o desafio.


Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).


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