|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
A esquerda tem um projeto alternativo ao neoliberalismo?
NÃO
É preciso coragem
ROBERTO ROMANO
Alternativa da esquerda ao
neoliberalismo? Difícil, se recordarmos os governos gerados nos laboratórios da esquerda contemporânea.
Existem mais vínculos entre setores esquerdistas e o pensamento conservador
do que é possível confessar. Diz Alain
Rey: "Na vida social, as palavras novas
servem para dissimular uma intenção
ou um ato bem real (...) Ao lado de seu
significado objetivo, elas transmitem
intentos que podem ser manipuladores" ("Le Monde", 28/1/98).
"Esquerda" e "neoliberalismo" são
noções e realidades múltiplas. Em língua hegeliana, elas constituem universais abstratos (só esclarecem parte do
que indicam, escondem o que não interessa revelar) ou "termos embreagem"
(E. Benveniste), que servem para continuar discursos sem provas lógicas ou
empíricas.
Termos embreagem povoam o setor
ideológico. Exemplos são as frases vazias sobre "vontade política". Arengas
partidárias usam aquele refrão para atacar adversários ou defender o inconfessável. "Esquerda" e "neoliberalismo"
integram universos terminológicos apinhados de noções embreagem. No seu
uso, ouvinte e falante comungam certezas religiosas. Há um outro lingüista,
Jean-Pierre Faye, que mostra a permanente passagem dos termos produzidos
na esquerda que são torcidos para a direita e vice-versa. Faye refere-se ao fenômeno como "a ferradura ideológica".
Ao parolar sobre o "neoliberalismo"
durante anos e anos, muitos petistas
sentiram-se justificados na sua "luta", o
"resgate da ética e da cidadania"... Poucos tentaram ler e analisar as bases teóricas daqueles termos, e a maior parte
repetiu slogans sobre o tema. No poder,
os mesmos petistas se refestelam com
receitas macroeconômicas que ontem
diziam abominar. Mas o vazio de sua
linguagem retoma o antigo vácuo especulativo "de esquerda", agora com sotaque realista. Sobra o autoritarismo que
não muda e repete chavões, só que em
sentido contrário.
O paradigma da esquerda no século
20 foi gerado pela Revolução Russa. Dadas as dificuldades trazidas durante a
guerra e no próprio movimento revolucionário, a saída leninista foi a NEP
(Nova Política Econômica) de 1921: "Eis
os fatos. A Rússia está ameaçada pela fome. Todo o sistema do comunismo de
guerra entrou em colisão com os interesses dos camponeses (...) É possível
restabelecer de certo modo a liberdade
de comércio? É uma questão de medida.
Podemos voltar atrás sem destruir a ditadura do proletariado". (Lênin, no 10º
Congresso do PC). O Retorno "comedido" ao mercado salva o poder esquerdista. Capitais estrangeiros, inclusive
norte-americanos, adquirem "confiança" no Estado russo e aplicam recursos
em obras de infra-estrutura. Não lembra muito uma realidade vivida em nossos tempos?
Em 1930, Stálin acaba com a NEP e
fulmina o debate entre os trotskistas e a
ala direita do partido. Stálin vence e promove a indústria, mas com o socialismo
num só país. Surgem os planos qüinqüenais e o papel dirigente do Estado na
economia, com inaudita produção tecnológica. É o tempo de "o homem, o capital mais precioso". O "capital" precisava ser preparado, donde a campanha
para alfabetizar as massas: o número de
analfabetos deixa de ser 72% e se reduz
a 19% do povo, de 1919 até 1940. Êxitos
surgem em colheitas, novas fábricas,
aumento de energia elétrica. Estava
pronto o modelo "comunista".
Recrudesceram os ataques às oposições, as capturas, os cortes na imprensa,
os campos de concentração, os processos infames num Judiciário de fancaria,
o culto à personalidade. Foi revigorada
a teoria das "etapas" históricas a serem
seguidas pelos países pobres, numa seqüência dogmática alimentada por cegueira ideológica e bajulação. Lyssenko
é prova dessa insânia. Mumificando-se
Lênin, o corpo do socialismo também
foi embalsamado. Começou a longa
noite que levou à implosão soviética.
A antiga esquerda social-democrata
assumiu em tempos alternados os governos da Alemanha, da França, da Inglaterra, da Espanha e de Portugal. O
modelo soviético nunca lhe serviu. Os
partidos socialistas governaram segundo uma lenta adaptação aos mercados,
no exato momento em que várias doutrinas, que desejavam diminuir ao máximo o poder de Estado na economia,
passaram a controlar organismos financeiros internacionais. Enquanto a ortodoxia soviética havia congelado cérebros, setores de esquerda tentavam retomar o debate anterior ao modelo burocrático estatal. Na ausência do imenso
partido único, uma pletora de movimentos procurou imaginar o que seria
um socialismo democrático e também
eficaz no plano econômico.
Hoje a esquerda não possui novos
modelos para opor ao paradigma stalinista nem aos liberalismos. Ou ela os
produz, mas para isso é preciso muita
coragem, cultura e imaginação produtiva, ou perece no abraço histórico com
seus oponentes. Pelo que se enxerga no
Brasil, o governo de esquerda escolheu a
segunda via. Que as demais esquerdas
aceitem o desafio.
Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - a Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo).
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Paul Singer: A alternativa da esquerda Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|