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TENDÊNCIAS/DEBATES
Pacientes e médicos
BORIS FAUSTO
Tomo a relação entre médico e paciente na visão de um leigo que acumulou certa experiência no
campo da sensibilidade
NA MEDIDA em que envelhecemos, a saúde ocupa uma parte
considerável de nossos pensamentos e das conversas com gente da
mesma ou quase da mesma idade.
Não é nenhum sinal de morbidez, como tendem a pensar os mais novos,
mas uma tendência positiva, originada da perda da ilusão da imortalidade
e do desejo de prolongar ao máximo a
existência em condições saudáveis.
Desses pensamentos e conversas
nasce um interesse mais amplo, sobre
medicação adequada, práticas alternativas à arte médica formalmente
reconhecida, relação entre paciente e
médico etc. Tomo aqui este último tópico, na perspectiva de um leigo que,
apesar de seu limitado conhecimento,
acumulou certa experiência no campo da sensibilidade ao longo dos anos.
Um ponto nevrálgico da relação entre pacientes e médicos diz respeito à
comunicação. Os primeiros, quase
sempre, querem falar, descrever seus
sintomas, expressar suas queixas. Entretanto, certos médicos preferem
não ouvir ou, quando muito, admitem
a fala do paciente como um inevitável
ruído preliminar. Significativamente,
"paciente", numa das definições do
dicionário "Houaiss", é aquele "que
tem paciência", que é "sereno, conformado" -atribuições indicativas de
uma atitude de resignação.
Bem sei existirem muitos profissionais que consideram ser essencial ouvir seus clientes, assim como não ignoro a importância de cursos, palestras, textos dedicados ao tema aqui
focalizado. Entretanto, vários fatores
conspiram contra os resultados dessas iniciativas. Entre eles, a natureza
da formação médica, as imposições da
prática profissional nos dias que correm e o avanço, aliás inestimável, da
tecnologia.
No que diz respeito à formação médica, considerados os longos anos de
estudo, o grau de especialização, a circunstância crucial de lidar muitas vezes com alternativas de vida ou morte, há uma tendência, entre certos
médicos, de se considerar "um ser especial". Esse comportamento -é forçoso reconhecer- não resulta apenas
do especialista, pois é incentivado por
muitos pacientes, que anseiam pela
infalibilidade do diagnóstico e da cura, nem sempre possível.
Ao mesmo tempo, ocorreu com a
profissão médica uma transformação
que reduziu boa parte de sua antiga
aura e tendeu a conduzir, por outras
vias, à dificuldade de comunicação.
Excetuados os estratos profissionais de prestígio, muitos médicos
passaram à condição de assalariados,
com salários nada brilhantes, obrigados a realizar atividades em diferentes locais. Isso sem se falar na pressão
exercida pelo pagamento irrisório de
consultas por parte de alguns convênios médicos, o que força o profissional a multiplicá-las. Em ambos os casos, o tempo para ouvir o paciente se
reduziu, resultando na perda de qualidade profissional.
A tecnologia é outro fator que concorre para dificultar a comunicação.
Se temos exames de laboratório de
crescente qualidade, se temos imagens cada vez mais aperfeiçoadas
que permitem vislumbrar desde minúcias de fraturas a tumores insidiosos em estágio inicial de evolução, por
que se preocupar com a relação médico-paciente?
A resposta talvez possa ser resumida em poucas palavras. A comunicação entre as partes e, se possível, a
empatia gerada por uma boa relação,
cristalizada ao longo do tempo, são
elementos fundamentais no sentido
de evitar, tanto quanto possível, erros
cognitivos por parte do médico e de
proporcionar ao paciente um conforto e uma segurança afetiva, indispensáveis. O desígnio maior, admitidas
todas as dificuldades, é o de transformar, cada vez mais, a relação médico-paciente em uma parceria, sem diminuir em nada o saber especializado
que o médico detém.
Tudo isso se refere a situações relativamente rotineiras. Um quadro particular, muito delicado, diz respeito à
transmissão a parentes e ao próprio
paciente do diagnóstico inesperado
de um caso considerado terminal.
Nessa circunstância difícil, o papel do
especialista é fundamental. Hoje, via
de regra, optam os médicos por não
ocultar o diagnóstico doloroso à família e ao paciente. Mas essa opção correta ainda diz pouco, pois é preciso
encontrar a forma e o momento adequados da comunicação.
Mais do que isso, é preciso deixar
aberta uma fresta ou, quem sabe, uma
porta de esperança. Para tanto, creio
na necessidade do reconhecimento
de que cada caso é um caso e de que
dados estatísticos, técnicas de qualidade reconhecida etc. não dizem tudo. Surpresas positivas são raras, mas
podem ocorrer -e não acredito que
caiam do céu.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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