São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Getúlio ainda divide

O cinqüentenário do suicídio de Getúlio Vargas, na semana que vem, será lembrado à luz da desmontagem de seu legado, empreendida nos governos Collor e Fernando Henrique. Esse legado é, por um lado, o de uma economia fechada, protegida da competição internacional, que se industrializou depressa em resultado de uma série de políticas de Estado que compeliam à substituição progressiva de importações.
De outro, esse legado se traduz numa forte regulamentação interna e nos direitos sociais concedidos por antecipação -verdadeira base da profunda popularidade de Getúlio. Do ponto de vista formal, como se sabe, houve dois Getúlios. Houve o líder da revolução democrática de 1930 que se equilibrou entre os antagonismos daquela década até se tornar ditador de um fascismo diluído, à brasileira, entre 1937 e 1945.
Quando a tendência da Segunda Guerra Mundial se alterou em favor dos aliados, Getúlio afastou-se da Alemanha e aderiu aos Estados Unidos, interessados em utilizar o Nordeste brasileiro como base de operações. Apesar da adesão, a vitória dos aliados gerou uma maré mundial que varreu também o Estado Novo. Deposto em 45, o ditador foi eleito presidente em 50, já investido da condição de líder de massas democrático.
Aí começa o outro Getúlio, que se apoiava em sindicatos sob controle governamental, flertava com a esquerda e adotava um discurso ultranacionalista. A sociedade polarizou-se favorável e contrariamente ao velho caudilho, até que o atentado contra Carlos Lacerda, a mando do chefe da guarda presidencial, levou à deposição de Getúlio e a seu último gesto -cálculo sensacional que adiou em dez anos o que viria a ser 1964.
Gesto insólito, terrível, dado o hábito nacional de cultivar a auto-imagem de cordialidade, nem por isso ele apaga a trajetória do ditador-presidente, feita de meneios, de rarefação ideológica, de esvaziamento das demandas pela técnica da antecipação e de cooptação de adversários no eterno abraço da conciliação nacional. Com Getúlio se confirma e se aperfeiçoa a estranha forma brasileira de mudar sem mudar, de fazer transições por osmose.
Essa a peculiaridade local, acrescida pelo fascínio da personalidade enigmática, reservada e ambígua de Getúlio. Mas convém não perder de vista que seu "modelo" repetiu, em linhas gerais, um fenômeno internacional que predominou entre as décadas de 1930 e 1950. Trata-se de todo um ciclo de governantes autoritários, que induziram a industrializações aceleradas e procuraram domesticar a então emergente sociedade urbana de massas.
A geração dos tenentes -que foi a de Getúlio- se atribuiu duas tarefas históricas: industrializar o país e reduzir as desigualdades abissais. Tiveram êxito na primeira e fracassaram na segunda, embora até hoje se pergunte se o Brasil teria evitado uma guerra civil não fossem as concessões sociais que Getúlio obrigou nosso capitalismo primitivo a fazer. Nesse sentido, o regime militar (1964-85) antes completou do que negou o legado getulista.
A desmontagem, ainda que parcial, foi obra do "tecno-liberalismo" dos anos 90. Também correspondeu a uma onda internacional a que cada ambiente doméstico se adaptou cedo ou tarde. Cedo ou tarde, também, ficará mais claro se o legado de Getúlio é uma ferramenta histórica que teve sua utilidade, mas se tornou obsoleta, ou se sua liquidação é que terá sido regressiva, no sentido de cavar um abismo ainda maior entre integrados e excluídos.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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