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OTAVIO FRIAS FILHO
Getúlio ainda divide
O cinqüentenário do suicídio
de Getúlio Vargas, na semana
que vem, será lembrado à luz da desmontagem de seu legado, empreendida nos governos Collor e Fernando
Henrique. Esse legado é, por um lado,
o de uma economia fechada, protegida da competição internacional, que
se industrializou depressa em resultado de uma série de políticas de Estado
que compeliam à substituição progressiva de importações.
De outro, esse legado se traduz numa forte regulamentação interna e
nos direitos sociais concedidos por
antecipação -verdadeira base da
profunda popularidade de Getúlio.
Do ponto de vista formal, como se sabe, houve dois Getúlios. Houve o líder
da revolução democrática de 1930 que
se equilibrou entre os antagonismos
daquela década até se tornar ditador
de um fascismo diluído, à brasileira,
entre 1937 e 1945.
Quando a tendência da Segunda
Guerra Mundial se alterou em favor
dos aliados, Getúlio afastou-se da Alemanha e aderiu aos Estados Unidos,
interessados em utilizar o Nordeste
brasileiro como base de operações.
Apesar da adesão, a vitória dos aliados
gerou uma maré mundial que varreu
também o Estado Novo. Deposto em
45, o ditador foi eleito presidente em
50, já investido da condição de líder de
massas democrático.
Aí começa o outro Getúlio, que se
apoiava em sindicatos sob controle
governamental, flertava com a esquerda e adotava um discurso ultranacionalista. A sociedade polarizou-se favorável e contrariamente ao velho caudilho, até que o atentado contra Carlos
Lacerda, a mando do chefe da guarda
presidencial, levou à deposição de Getúlio e a seu último gesto -cálculo
sensacional que adiou em dez anos o
que viria a ser 1964.
Gesto insólito, terrível, dado o hábito nacional de cultivar a auto-imagem
de cordialidade, nem por isso ele apaga a trajetória do ditador-presidente,
feita de meneios, de rarefação ideológica, de esvaziamento das demandas
pela técnica da antecipação e de cooptação de adversários no eterno abraço
da conciliação nacional. Com Getúlio
se confirma e se aperfeiçoa a estranha
forma brasileira de mudar sem mudar, de fazer transições por osmose.
Essa a peculiaridade local, acrescida
pelo fascínio da personalidade enigmática, reservada e ambígua de Getúlio. Mas convém não perder de vista
que seu "modelo" repetiu, em linhas
gerais, um fenômeno internacional
que predominou entre as décadas de
1930 e 1950. Trata-se de todo um ciclo
de governantes autoritários, que induziram a industrializações aceleradas e
procuraram domesticar a então emergente sociedade urbana de massas.
A geração dos tenentes -que foi a
de Getúlio- se atribuiu duas tarefas
históricas: industrializar o país e reduzir as desigualdades abissais. Tiveram
êxito na primeira e fracassaram na segunda, embora até hoje se pergunte se
o Brasil teria evitado uma guerra civil
não fossem as concessões sociais que
Getúlio obrigou nosso capitalismo
primitivo a fazer. Nesse sentido, o regime militar (1964-85) antes completou do que negou o legado getulista.
A desmontagem, ainda que parcial,
foi obra do "tecno-liberalismo" dos
anos 90. Também correspondeu a
uma onda internacional a que cada
ambiente doméstico se adaptou cedo
ou tarde. Cedo ou tarde, também, ficará mais claro se o legado de Getúlio é
uma ferramenta histórica que teve sua
utilidade, mas se tornou obsoleta, ou
se sua liquidação é que terá sido regressiva, no sentido de cavar um abismo ainda maior entre integrados e excluídos.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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