São Paulo, quarta-feira, 19 de agosto de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A crise e a crise das televisões

JORGE DA CUNHA LIMA


Acredito que a televisão pública ainda é o melhor antídoto contra a televisão nenhuma que se avizinha no horizonte


A TELEVISÃO vive uma crise de destino, porque não se sabe quem vai ficar com o trono, se ela ou o filho bastardo, que é a internet. Vive uma crise de conteúdo, tanto as públicas quanto as privadas.
A TV comercial optou pelo rebaixamento de qualidade causado pela concorrência que disputa a audiência total e universal.
A TV pública está perplexa, com o bom-mocismo inato e o fascínio pela comercial. Não tem coragem de ousar, de confirmar a diferença e pôr as fichas na vanguarda criativa.
Com pouco dinheiro, incompreensão crônica dos poderes, padrões antigos de gestão, produção e criação, peso burocrático da saudade e falta de jovens criadores, não consegue a audiência mínima e se perde de si mesma. Seu prestígio perante a opinião pública foi obtido com a prática obstinada da independência política e editorial e com a programação infantil.
Dirigi a TV Cultura por nove anos, presidi a Abepec (Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais), que conscientizou as televisões públicas, defendi essa independência e, ainda assim, não consegui fazer o que reclamo. Por quê?
Porque tive medo de virar a mesa.
TV pública é televisão para os cidadãos. Melhor dizendo, para o projeto de cidadania embutido no coração democrático das sociedades.
Isso pressupõe produzir informação analítica nos telejornais. O telespectador não merece o arremedo de espetáculo policial em que se transformou o noticiário. O cidadão merece compreender. Um jornal aberto, como fizemos no TV MIX da Gazeta, produzindo e gerindo os acontecimentos com a câmara na mão, a inteligência no olhar e a poesia na alma. A programação cultural não precisa de verniz nem de vernissage. Precisa de luz, de coragem, de 50 Zé Celsos por ano e de, pelo menos, um Rimbaud por década.
Na educação, não precisamos "curricular" mais ninguém, mas transmitir educação superior e complementar para todas as classes, hoje igualmente mal-educadas, sobretudo para a classe C, que, nas pesquisas, tem se mostrado aberta e esforçada para alcançar uma pós-graduação humanística, presencial ou à distância. Praticamos juntos na Cultura, durante cinco anos, o jornalismo público, mas com timidez. Nossos melhores quadros migraram ou foram demitidos, e o jornalismo público virou guia encalhado de boas intenções.
"Jornalista sem cultura será sempre um foca", já dizia meu guru Claudio Abramo, e "Jornalista que não acredita na matéria deveria ficar tomando café na Redação", bradava Samuel Wainer, meu segundo guru. Repórter cultural que pergunta para Lygia Fagundes Telles "O que é que a senhora faz, mesmo?" merece a resposta que ela deu: "Minha filha, faço crochê e, quando tenho um tempinho, escrevo".
Fiz a divulgação dos produtos não consagrados no mercado comercial da arte, mantive uma orquestra da fundação, mobilizei um grupo cultural para apurar as coisas numa reunião semanal, defendi a autonomia, criei cursos para o público interno, mas João gostava de Maria, que gostava de José, que gostava de Lúcia, que não gostava de ninguém.
A luz apagou, a orquestra fechou, e o enorme peso da instituição quase me transformou num busto.
Hoje, creio que a solução seria a implosão radical das grades de programação, com a introdução de faixas segmentadas de audiência, mas capazes de abrir janelas para os curiosos. Oferecer o mais alto nível para todas as classes, sem a falsa pressuposição de que as classes C e D querem lixo. A segmentação na TV pública é temática, e não de classes sociais. Acredito que a televisão pública ainda é o melhor antídoto contra a televisão nenhuma que se avizinha no horizonte.
Amaldiçoar a TV Brasil, legalizada sob princípios primorosos elaborados pelo campo público da televisão, só porque seu conselho descarrilou de um trilho mal pregado ou porque a programação, como em toda televisão brasileira, vive a crise precoce do envelhecimento beira o farisaísmo.
Da mesma forma, as 20 televisões estaduais existentes lutam para ter a cara e o caráter da televisão pública, apesar das oligarquias que as pretendem televisões estatais.
A TV Cultura, na pesquisa que realizei para escrever o livro dos 40 anos, evidenciou o quanto é uma instituição necessária. Mostrou-se ainda indestrutível, como serviço de utilidade pública mental, na ditadura, na transição democrática e na democracia globalizante. A universidade virtual, seu mais recente projeto de educação à distância, vai marcar a educação digital no Brasil.
Se lamento pelo que ainda não se pode fazer pela televisão pública brasileira -e mesmo na TV pública latino-americana-, eu e centenas de trabalhadores do campo público da televisão educativa, universitária e comunitária nos orgulhamos da obsessão proclamada em torno e em defesa da televisão pública.


JORGE DA CUNHA LIMA , 77, jornalista, escritor e poeta, é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e vice-presidente do Itaú Cultural.

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