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TENDÊNCIAS/DEBATES
O "toque de recolher" para menores de 18 anos é uma boa medida de combate à violência?
NÃO
A mentira da segurança
PAULA MIRAGLIA
NOS ÚLTIMOS meses, vários
municípios brasileiros têm
adotado o "toque de recolher"
para menores de 18 anos. Por meio de
uma medida judicial, uma lei aprovada pela Câmara de Vereadores ou
uma decisão do Executivo municipal,
adolescentes e jovens dessas localidades são proibidos de sair de suas casas
no período noturno.
A justificativa para a medida se ampara num discurso que enxerga na
restrição da liberdade uma estratégia
de segurança. Manter os jovens longe
das ruas evitaria que consumissem
bebidas alcoólicas, se envolvessem
em episódios violentos ou com o universo infracional e reduziria, assim, o
número de crimes nessas cidades.
O "toque de recolher" é inconstitucional. A restrição do direito à liberdade de crianças e adolescentes viola
o artigo 227 da Constituição, que assegura sua liberdade, convivência familiar e comunitária, além de protegê-los contra qualquer forma de discriminação. Apenas isso bastaria para
desqualificá-lo no seu mérito: essa é
uma opção que não está disponível.
Soluções à margem da lei há muito
vitimam a sociedade brasileira. Não
precisamos de mais uma versão desse
desrespeito, que se torna ainda mais
grave quando parte da iniciativa de
representantes do Judiciário.
Mas, além da sua ilegalidade, a medida é uma armadilha disfarçada de
política pública. Em lugares onde o
Estado é aparentemente incapaz de
cumprir sua obrigação -ou seja, garantir a segurança dos cidadãos-,
uma parcela da população é punida
por causa disso.
É impossível não perguntar por que
a mesma mobilização não acontece,
por exemplo, para fiscalizar a venda
de bebidas alcoólicas para menores
de 18 anos ou para efetivar as medidas
relativas ao desarmamento. Ou, ainda, por que não assistimos à articulação do Judiciário, do Legislativo municipal e da prefeitura na execução de
projetos de prevenção à violência voltados para adolescentes e jovens?
A resposta é óbvia: por que é difícil.
Essas ações exigem planejamento, integração, criatividade e muita dedicação. Em outras palavras, tudo aquilo
que uma política pública de qualidade, duradoura e eficaz deveria ter.
Infelizmente, sabemos que nem
sempre o poder público responde aos
problemas com políticas dessa qualidade. Em muitos casos, e esse é notadamente um deles, prefere adotar estratégias fáceis, que embaçam a percepção da opinião pública sem resolver o problema.
O que os municípios não percebem
é que, ao sancionar a lei ou executar a
medida imposta pelo juiz, estão, na
verdade, reconhecendo publicamente sua incapacidade na formulação de
políticas de prevenção à violência.
Segurança é sinônimo de liberdade.
De ir e vir, de interagir com seus pares, de desfrutar do seu bairro e da sua
cidade. Mais do que isso, estar seguro
se traduz em convivência e ocupação
dos espaços públicos.
As vítimas da violência urbana sabem, melhor do que ninguém, que ela
impõe uma série de restrições de ordem individual e comunitária e impede que a vida seja desfrutada de maneira plena. Não é aceitável que políticas de segurança ou de prevenção
adotem esse mesmo princípio.
Mas, diante de tal afronta, onde estão os maiores interessados?
Não é de hoje que o país conta com
instâncias de representação de adolescentes e jovens. Pois estes devem
cobrar que o Conselho Nacional de
Juventude, a União Nacional dos Estudantes, os conselhos municipais e
estaduais e a sociedade civil organizada que trabalha com o tema se posicionem sobre o assunto e tratem de
impedir essa grave violação de direitos. Que pauta política pode ser mais
prioritária do que a garantia das liberdades individuais?
Adolescentes e jovens são hoje as
grandes vítimas da violência no Brasil. É absolutamente anacrônica e
preconceituosa a visão de que a solução para o problema passa por marginalizá-los ainda mais. Eles são os
maiores interessados na transformação dessa realidade e devem ser os
protagonistas desse processo.
O primeiro passo nesse sentido é
tratá-los como cidadãos plenos e sujeitos de direitos, dignos do direito à
segurança e à liberdade.
PAULA MIRAGLIA , 35, doutora em antropologia social
pela USP, é diretora-executiva do Ilanud (Instituto Latino
Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito
e Tratamento do Delinquente).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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