São Paulo, Terça-feira, 19 de Outubro de 1999
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TENDÊNCIAS/DEBATES

Escândalos no mundo universitário

ROBERTO ROMANO

Os últimos fatos de malversação de recursos que abalaram as universidades paulistas, em centros de pesquisa nelas instalados, exigem reflexão e prudência. O mínimo a dizer é que dinheiro público foi distribuído sem atentar para os alvos institucionais dos campi.
Há bom tempo, os setores acadêmicos entraram numa fase decisiva para sua vida ética: a renovação dos fins universitários. No mundo todo, desde que Margaret Thatcher impôs as regras da avaliação neoliberal às venerandas Oxford e Cambridge, o imperativo categórico dos professores resume-se a arrecadar dinheiro para manter imensas estruturas (laboratórios, bibliotecas, prédios etc.). O correlato dessa faina é a preparação dos pesquisadores para a venda do que se produz naqueles setores. Segundo um analista do fenômeno, entre as pessoas mais importantes nas universidades está o indivíduo que amealha verbas, públicas ou particulares. Enquanto isso, os docentes assumem o papel de ambulantes que seguem pelo mundo inteiro, angariando lugar na mídia, vendendo o logotipo de sua instituição para o público e para quem decide sobre os orçamentos.
Instalou-se um darwinismo financeiro no mundo da pesquisa. A luta para atingir os alvos universais do saber e do reconhecimento não mais ocorre entre indivíduos ou grupos dedicados à ciência. Continua válida, infelizmente, a frase de Alexandre Kojève sobre o mundo intelectual: o "reino dos ladrões roubados". Hoje, as próprias universidades se definem como sôfregas concorrentes, numa guerra sem regras e sem respeito, tendo em vista os recursos. A "boa" administração, científica ou pedagógica, é a eficaz nesse plano. A "excelência" acadêmica mede-se com o número de entrevistas fornecidas pelos professores. Vencem os núcleos que dominam a propaganda.
Assim, mais dinheiro é dado aos departamentos colocados no topo das listas de avaliação regidas pelo marketing. No mesmo passo, "os mais pobres, ou os que ainda estão se desenvolvendo, permanecem famintos de dinheiro (...). Em longo termo, isso permite a concentração de recursos nos centros de alto desempenho, encorajando o sumiço de departamentos, até mesmo de universidades, percebidas como fracas" (Bill Readings, "The University in Ruins", Harvard Un. Press, 1996).
Essa violência, comum na Europa e nos EUA, começa a produzir frutos no Brasil. Os fatos lamentáveis que surgem hoje, reportados pela Folha, são apenas a última fase de erros internos e externos à universidade acumulados em décadas. Os governos brasileiros, no plano federal e nos Estados, cortaram recursos para instituições de ensino superior. No mesmo passo, os salários dos professores foram congelados. Numa sociedade onde não existe o investimento particular, a fundo perdido, nos campi, também definharam os meios oferecidos para a pesquisa fundamental. A receita salvadora, oferecida aos pesquisadores brasileiros, é a mesma imposta por Thatcher aos ingleses: buscar dinheiro onde ele se encontra, no mercado, nas "parcerias com a iniciativa privada". Veio o apelo à propaganda e aos procedimentos habituais do soberano mercado. A atividade de extensão, um esteio da universidade hoje em ruínas, tornou-se o caminho de professores em busca de recursos.


Os fatos lamentáveis que surgem hoje são apenas a última fase de erros acumulados em décadas

No mesmo tempo, surgiram os "núcleos", os "grupos", os "centros", entidades não raro fantasmagóricas e sem determinação jurídica responsável, servindo como instrumento na luta pela melhoria dos orçamentos familiares ou, se ainda existe certa ética, de laboratórios e bibliotecas sucateados.
Sem esse pano de fundo é impossível entender a enxurrada de fatos escandalosos envolvendo a vida universitária. Volto à proposta, feita por mim nesta Folha há bom tempo, de criar uma comissão de controle externo dos recursos públicos alocados nos campi, oficiais ou particulares. A comissão seria composta por representantes de Executivo, Legislativo e Judiciário, além de representantes da própria universidade e dos segmentos sociais.
Em cada ano, antes da elaboração orçamentária, todas as universidades que receberam recursos públicos deveriam apresentar suas contas, explicando o que fizeram com verbas públicas. Às que tivessem bem empregado os meios, todo apoio seria concedido, inclusive maior aporte financeiro. As que não pudessem justificar seus gastos receberiam sanções diversas, até o corte absoluto de verbas. Enquanto algo assim não se efetivar e a política científica brasileira não assumir novos rumos os escândalos universitários serão cada vez piores, até que nada reste da autoridade ética e moral, base mínima do comportamento nas universidades.


Roberto Romano, 53, filósofo, é professor de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).




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