São Paulo, quinta-feira, 19 de outubro de 2006

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De sindicalistas a analistas

RICARDO ANTUNES

Nos escândalos do governo do PT, um traço persiste e inquieta: a presença de lideranças que nasceram com o "novo sindicalismo"

 "Como é difícil aspirar o fim sem desprezar o meio! Alguns até confundem os meios com o fim, desfrutam daqueles perdendo este de vista"
(Goethe, "As Afinidades Eletivas")

NOS INÚMEROS escândalos que vexaram o governo do PT, há um traço persistente e inquietante: a presença de lideranças que nasceram com o "novo sindicalismo".
Delúbio, Okamotto, Gushiken, Lorenzetti, Bargas e Berzoini, todos, sem exceção, iniciaram suas carreiras nos degraus do sindicalismo.
Quase todos galgaram os andares superiores da CUT (Central Única dos Trabalhadores) militando ativamente na tendência Articulação Sindical, que há muito controla com mão-de-ferro a central.
Todos saltaram de postos sindicais para atividades diretamente políticas -como assessores, como parlamentares ou até mesmo como ministros de Estado. Se incluirmos os conselhos das estatais e dos fundos de pensão, aí o espaço seria insuficiente para listar tantos nomes.
Se o envelhecido "novo sindicalismo" tem uma história diferente do que se conheceu como "aristocracia operária" nos países centrais, como explicar, então, a sua conversão de sindicalistas a "analistas simbólicos", analistas de "risco e mídia"? Como explicar o salto tão bem-sucedido?
É preciso reconhecer que muitos deles foram forjados nas vivas lutas sociais durante a ditadura militar. Alguns vinham da militância de base, próximos da esquerda católica; outros saíram das diferentes correntes marxistas, em dissensão com os partidos comunistas; outros, ainda, se postulavam como "sindicalistas autênticos", recusando qualquer vinculação política; enfim, era variada a gama de sindicalistas.
Foi neste mesmo solo que floresceu o mais importante de todos, Luiz Inácio Lula da Silva, o agora presidente Lula, o metalúrgico, que, inicialmente, também recusava a política para fazer sindicalismo.
Mas, se a origem dos sindicalistas foi diversa, a Articulação Sindical foi, pouco a pouco, moldando-os. Os que vieram da esquerda foram se esquecendo do passado militante. Quem pode imaginar que Gushiken fazia trepidar os palanques, citando Trótski com um vigor nada zen, atormentando a vida dos banqueiros?
Os chamados "sindicalistas autênticos" foram deixando para trás a espontaneidade de suas lutas, foram se tornando homens da máquina sindical (depois do partido), tão mais pragmáticos quanto mais alçavam vôos na hierarquia, tão mais cordiais quanto maiores eram as vantagens materiais.
Abandonaram a política de formação de classe e de base -histórica em todo sindicalismo crítico e de esquerda- pela prática do sindicalismo negocial, maneiroso para fora e mandonista para dentro.
Apreenderam, nos infindáveis convênios, cheios de recursos, com parcelas do sindicalismo internacional, como envelhecer precocemente.
Combinaram, com sapiência, o pragmatismo sindical com a política aparelhista dentro da estrutura.
Tendo sempre como lema a recusa da reflexão -de novo, Lula é a expressão típica-, vivenciaram as múltiplas vantagens da ascensão. Trocaram a riqueza da espontaneidade pela leveza da praticidade. Paralelamente à depressão ideo-política, dava-se a ascensão da "nova corporação".
O velho corporativismo getulista era substituído pelo neocorporativismo da fase lulista. A chamada "república dos sindicalistas" deixava para trás os reais interesses do trabalho, mantendo, no entanto, os pilares herdados do sindicalismo atrelado ao Estado.
Pudemos então presenciar, com a desmontagem da Previdência pública e o fortalecimento dos fundos de pensão, o reencontro simbólico, agora no mesmo palanque, de Gushiken, Berzoini e os banqueiros.
Quem lembra da CUT em sua origem -de base, socialista e pluralista- e vê hoje seu núcleo dirigente atrelado e atolado nos cargos do governo, dependente dos fundos públicos para sobreviver, olhando com volúpia para os fundos de pensão, sabe do que estamos falando.
Esse solo, no qual pragmatismo, ascensão social, vantagens materiais, aparelhos sindicais e partidários, tesourarias, recursos, dólares, mandonismo e burocratismo foram cimentados e incentivados pelo "culto do líder", gerou uma gama de "pequenos chefes", amigos do rei que tudo fazem para agradá-lo e servi-lo de todos os modos e de todas as maneiras. Até quando a atual campanha eleitoral já estava praticamente ganha, foi preciso forjar um dossiê para que a vitória fosse acachapante. Deu no que deu. Curta foi sua trajetória, de sindicalistas a analistas.


RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 49, é professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade de Campinas). É autor, entre outras obras, de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil" (Boitempo).

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