|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O assombro das noites
RIO DE JANEIRO - Nunca esqueci a noite em que, acordando de um pesadelo, vi luz acesa na sala e fui ver
quem estava lá. Ajoelhada diante da
mesa, cabeça baixa, terço nas mãos,
tia Zizinha rezava, madrugada alta,
tudo em silêncio, ela magrinha, parecia um passarinho molhado, sentindo frio.
Era devota, a minha tia, não deveria ficar impressionado, mesmo assim fiquei. Sabia que ela rezava por
todos nós, por mim, pelo meu avô que
estava doente, pelo mundo inteiro.
Evitei que ela me visse e voltei para a
cama, perdera o medo do pesadelo,
sabia que os fantasmas não mais me
assustariam.
Anos depois, muitos anos depois,
viajava com o Otto Maria Carpeaux,
fazíamos palestras agendadas por diretórios de estudantes, centros de estudos, era um mambembe não-remunerado e estranhíssimo, pois Carpeaux era gago, eu falava mal e pronunciava as palavras de forma errada, mesmo assim, havia gente que
deseja ouvir-nos.
Em Florianópolis, num hotel modesto, acordei no meio da noite e
olhei para a cama ao lado. Estava vazia. Carpeaux sofria de insônia, imaginei que ele, sem fazer barulho, na
ponta dos pés, tivesse saído do quarto, tomando cuidado para não me
acordar.
Não acendi a luz, mas saí da cama,
fui à saleta anexa ao quarto, que
também estava escura. Voltado contra a parede, numa direção que eu
não podia determinar (Roma? Meca?
Jerusalém?) Carpeaux estava de joelhos, cabeça baixa, os braços estendidos, como um anacoreta medieval,
perdido num deserto sem estrelas.
Carpeaux era judeu vienense, convertera-se ao catolicismo, segundo alguns, para conseguir um visto no Vaticano que o tirasse da Gestapo, que o
procurava. Eu sabia tudo sobre Carpeaux, menos o seu passado europeu,
sobre o qual ele nunca falava. Não
frequentava igrejas, evitava qualquer
discussão sobre temas religiosos.
Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e fico de joelhos diante de meus espantos.
Texto Anterior: Brasília - Fernando Rodrigues: Insensibilidade Próximo Texto: Antonio Delfim Netto: A Aeronáutica e os "offsets" Índice
|