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TENDÊNCIAS/DEBATES
Bismarck, a Petrobras e os dois jumentos
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
Sem um entendimento entre o setor privado e o Estado, o etanol pode se tornar um fracasso incomensurável
"NÃO SOU tão estúpido assim que não aproveite a
inteligência de meus inimigos". A frase caracteriza o espírito
e a ação daquele que unificou, fundou
e foi o primeiro dirigente da Alemanha, o duque Otto von Bismarck. E
por isso foi considerado o maior estadista daquele país. O presidente Lula
também foi considerado um estadista
ao criar uma espécie de "Secretaria de
Futurologia e Adivinhação" e entregá-la a um seu contumaz crítico.
Porém, nesse caso, o paralelo com
Bismarck não se completa, pois nada
permite concluir que alguma inteligência possa vir a ser aproveitada. Em
realidade, a conclusão é trivial. Para
ser considerado um estadista, uma
precondição é a de que seja colocado
acima de seus sentimentos pessoais o
interesse da sociedade.
Os empresários estão às turras com
a Petrobras. Na imprensa, pululam
notícias de que o Estado brasileiro (a
Petrobras) está se apoderando do
controle do etanol. A desconfiança do
setor privado em relação à Petrobras
é pertinente. Durante muito tempo,
assumindo suas responsabilidades
como braço do Estado, foi ela obrigada a incorporar e digerir perdas devido à distribuição do álcool que então
significavam custos razoavelmente
superiores aos do petróleo, ao qual
substituía. É, portanto, compreensível a sua aversão histórica ao etanol.
É bom lembrar que, em contrapartida, o golpe de misericórdia no Proálcool foi orquestrado pela presidência
da Petrobras. Naquele momento, a
condição de "empresa" se superpôs à
de braço estatal consciente de suas
obrigações para com a nação.
Por outro lado, não é possível deixar de considerar o inerente conflito
de interesses que significa a mesma
empresa comercializar um produto
próprio concomitantemente com outro produzido por terceiros e que concorre com o seu, sobretudo quando
detêm essa empresa o monopólio da
distribuição. É por isso que, na maioria dos países industrializados, há legislação impedindo essa pouco salutar configuração comercial.
Entretanto, a possível e muito esperada expansão da produção de etanol no Brasil se fará, se por acaso vier
a acontecer, de maneira muito peculiar, devido a uma explosão da demanda internacional.
Há hoje em operação no Brasil cerca de 350 usinas, com 85% da produção concentradas no Estado de São
Paulo e vizinhança (60% no norte do
Estado, de pequenas dimensões espaciais). Mais 120 projetos, entre novas
usinas e ampliações, estão em construção ou em fase de licenciamento,
situados todos na mesma região.
E por que será que essa perversa
concentração já existente viria a se
acentuar ainda mais com essas novas
120 destilarias e muitas outras futuras? Simplesmente porque já há, embora precária, uma infra-estrutura
viária que, apesar dos custos elevados, permite o escoamento da produção atual. Todavia, nada assegura que
mesmo esse acréscimo já em andamento não venha a saturar o sistema
viário existente, pelo menos em alguns pontos críticos. Também parece
inevitável uma guerra de preços entre
usinas por cana cuja expansão agrícola não ocorrerá na mesma proporção.
Por outro lado, estudos realizados
na Unicamp mostram que o escoamento da produção por via rodoviária
tem custos entre dez e cem vezes
maiores do que os alcançáveis por alcooldutos, dependendo da localização. Todavia, dutos só se tornam economicamente viáveis acima de certos
volumes mínimos, o que exige concentrações e distribuições da produção adequadas.
Ora, não há como o setor privado
enfrentar essa questão sem uma decisiva contribuição do Estado. Acrescente-se a necessidade de terminais
portuários, navios-tanques, meios de
armazenamento, não apenas para estoques logísticos mas também estratégicos. O planejamento e a construção dessa parafernália também exigem a participação do Estado.
Pois bem, estamos em uma situação em que, sem um entendimento
entre o setor privado e o Estado, o etanol pode se tornar um fracasso incomensurável, com perdas irreversíveis
para o país. Sem o apoio do Estado,
nem sequer um crescimento vegetativo para atender o mercado interno
será possível. Também é verdade que
o Estado não tem como se tornar um
produtor de etanol.
O impasse me lembra uma caricatura dos anos 50. Dois jumentos
amarrados por uma corda esticada se
esforçam para alcançar montículos
de feno distantes além da dimensão
da corda. Depois de muito sofrerem,
entendem que precisam colaborar
para não perecer e abocanham os dois
juntos um montinho de cada vez.
Esperemos que o setor privado e o
governo aprendam com os jumentos
e se mostrem tão inteligentes quanto.
E que, como Bismarck, ponham o interesse nacional (e os seus próprios)
acima de suas picuinhas tribais.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 76, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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