São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

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JOÃO SAYAD

Tolerância

Os Estados Unidos são o único país do mundo em que se tenta proibir o ensino da teoria da evolução.
Em 1925, os "creacionistas" se opunham à teoria porque contradizia a interpretação literal do Gênesis. Atualmente, alegam que os professores de ciências fazem insinuações sobre a inexistência de Deus. Exigem que se apresente a teoria do "intelligent designer", um projetista inteligente (Deus?) que explicaria o sentido da evolução.
Para nosso desespero, não é possível demonstrar logicamente que o mundo tenha sentido ou um projetista inteligente. Nem demonstrar que Deus não existe.
A polêmica está limitada a alguns estados americanos do sudoeste e do sul. No resto do pais e no mundo inteiro, religião e ciência são campos paralelos, que fazem perguntas e oferecem respostas a problemas diferentes e não opostos.
Os Estados Unidos são uma federação de seitas, etnias e raças fundamentalistas. Democracia e liberdade de expressão resultam de um equilíbrio tenso entre grupos igualmente poderosos com princípios rígidos e inegociáveis.
Por isto, os americanos são obrigados a ser pragmáticos ("verdade é o que funciona") ou relativistas. Pragmatismo e relativismo são as únicas filosofias possíveis num país congestionado de verdades irreconciliáveis e onde mentir é o único motivo para levar um presidente ao "impeachment".
A diversidade entre visões de mundo não requer tolerância. Eu não preciso "tolerar"que você goste de chá e eu, de café. A tolerância- do latim "tolerare", suportar- é necessária apenas entre idéias que não são apenas diferentes, mas contraditórias e que se reconhecem reciprocamente .
Evolucionismo e religião são temas diferentes que se opõem apenas quando discutem a existência de Deus que não é tema da ciência. Em geral, religiosos não precisam "tolerar" cientistas, nem escandinavos "tolerar" os paraguaios. São indiferentes uns aos outros.
Já o convívio entre judeus, cristãos e muçulmanos demanda uma tolerância enorme. Disputam o amor do mesmo Deus, discordam sobre o verdadeiro Messias e usam o mesmo Livro. Jerusalém é o ponto focal - cidade do Templo de Salomão, em que Jesus foi crucificado e Maomé subiu aos céus.
Ocidente e Oriente nunca foram indiferentes. As charges sobre Maomé, encomendadas como um "teste" para a liberdade de imprensa dinamarquês geraram protestos e morte. Na França, a lei Gayssot criminalizou a negação do Holocausto. A liberdade de expressão levada ao limite ameaça a liberdade de expressão.
O Brasil é o país da tolerância. Aqui, Ogum é S. Jorge e a Virgem Maria, Iemanjá. Sofremos do melhor racismo do mundo, ainda que continue sendo racismo. Os negros se consideram brancos e os brancos dizem que gostariam de ser negros. Ricos toleram os pobres e pobres agradecem a tolerância.
Somos pragmáticos diferentes dos americanos. Não precisamos conviver com verdades rígidas. Aqui a verdade é menos nítida, convive bem com contradições. Seriamos um país admirável se tanta tolerância não for apenas fruto de indiferença.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
@ - jsayad@attglobal.net


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