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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Justiça sem medo

CLÁUDIO BALDINO MACIEL

Há cerca de nove meses, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) publicou, em seu "Jornal do Magistrado", fotos dramáticas de uma exposição itinerante que percorre o mundo para relembrar os trágicos acontecimentos que culminaram nos atentados de Capaci (23/5/92) e Via d'Amélio (19/7/92), onde foram mortos os notáveis juízes italianos Giovanni Falcone e Paolo Borsellino.
Na ocasião em que divulgávamos o rosto de um dos ícones da luta contra a criminalidade e a violência, parecia estar ainda longe de nós, magistrados brasileiros, o contexto de ameaças e riscos enfrentados pelo pequeno grupo de dez magistrados italianos que, entre os anos 70 e 90, foi encarregado de investigar uma série de crimes envolvendo grandes chefes da máfia, políticos, empresários e funcionários públicos. Não podíamos imaginar que em menos de um ano estaríamos enfrentando realidade tão semelhante à Itália de ontem e da Colômbia de hoje.
Mudam os protagonistas, mas a história se repete. Na Itália, o impacto da tragédia deu origem à Operação Mãos Limpas e a uma série de medidas legislativas de endurecimento das penalidades impostas àqueles que, além de atentarem contra vidas humanas, desafiam a cidadania e o Estado democrático. Muitas dessas medidas foram sendo paulatinamente suspensas conforme os resultados alcançados. Na Colômbia, no entanto, o Estado parece estar perdendo a guerra contra o crime organizado.
Seria reconfortante lembrar aqueles magistrados italianos tombados como mártires de um passado já distante e totalmente estranho à nossa realidade, mas no Brasil, hoje, a escalada incontrolável da violência transformou em vítima toda a sociedade, verdadeira refém do medo e da insegurança. O crime organizado, pródigo em meios e recursos cada vez mais nocivos, chegou a níveis intoleráveis e desafia não só a polícia e as autoridades governamentais, mas também a todos aqueles que trabalham e lutam pelos direitos e pela liberdade. E o Estado demonstra não estar aparelhado para reverter tão dramático quadro de instabilidade e apreensão social.
Nós, magistrados, temos de assumir a parcela de responsabilidade que nos cabe nessa questão. Promovemos, assim, uma pesquisa entre todos os 15.700 magistrados do país, para colher opiniões, sugestões e projetos em torno do tema e oferecê-los como contribuição qualificada ao Congresso Nacional.


O crime organizado, pródigo em meios e recursos cada vez mais nocivos, chegou a níveis intoleráveis


A partir desse estudo, a magistratura apresentou ao Congresso proposta de alteração na lei penal, não somente incorporando na legislação dos crimes hediondos aqueles delitos graves praticados pelo chamado crime organizado, como estabelecendo especial aumento de pena para os delitos cujas vítimas sejam autoridades públicas que detenham funções de prevenção, combate e julgamento de crimes, bem como de fixação e execução de penas criminais.
Somente um simplismo tacanho ou malicioso poderia supor que a norma proposta visa o tratamento de determinadas pessoas como privilegiadas. O escopo da norma não é a proteção maior a pessoas determinadas, mas a funções estatais de combate ao crime, para que se fortaleçam e ganhem em efetividade, pois, se os criminosos com facilidade atingirem os titulares de tais funções, já não haverá quem possa agir, nessa área sensível, com a almejada eficiência em defesa do agrupamento social. O benefício é, assim, direta e obviamente, de toda a sociedade brasileira.
Embora perplexos e apreensivos com o brutal e covarde homicídio do colega, os magistrados brasileiros não se deixarão intimidar. Devem, em muitos casos, ter eficiente proteção pessoal e familiar para bem cumprir suas responsabilidades, mas seguirão todos a postos, com serenidade, cumprindo sua gravíssima missão constitucional de garantidores do Estado de Direito democrático e de última trincheira dos homens de bem contra a opressão e o crime.
Tal é, além de sua missão constitucional, a homenagem mínima que podem fazer a um colega que tombou honrando a toga que envergava com orgulho, justiça e altivez. A valerem a intimidação, por um lado, ou o revanchismo, por outro, de uma ou de outra forma estará o Estado brasileiro perdendo definitivamente a guerra contra o crime e se demitindo de sua missão essencial de defesa da sociedade através da efetividade do direito e da lei.
Começaremos a perder a guerra se formos contaminados pela mesma lógica do medo e da violência contra nós exercida, acreditando que tudo se resolve só com brutal repressão, ou se formos intimidados pela ousadia e violência da criminalidade. Venceremos se, com reflexão madura, não-emocional e comprometida com resultados efetivos, obtivermos a integração de todos os poderes da República para o enfrentamento objetivo, orgânico e eficiente da chaga do crime organizado, iniciando pelo combate sem trégua à corrupção, pela ocupação cidadã dos espaços públicos deixados à geografia da criminalidade e pela recuperação do espaço moral perdido para a cultura do individualismo e do egoísmo socialmente perverso.

Cláudio Baldino Maciel, 47, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é presidente da AMB.


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