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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Rigor e equilíbrio

MIGUEL REALE JÚNIOR

O assassinato de um juiz choca a comunidade, insegura com a violência contra um membro do Poder que representa a garantia da paz social, da distribuição da justiça pela aplicação do direito. Se o assassinato, então, ocorre pelas mãos de asseclas dos criminosos condenados, cujas pretensões de benefícios foram justamente rejeitadas pela vítima no exercício da judicatura, a insegurança ganha cores do medo e da indignação. Dá-se a passagem do Estado de Direito, personificado pelo magistrado, à barbárie, pois a concretização da lei na imposição de sanções sofre a vicissitude da represália da criminalidade sem fronteiras, com a prepotência própria do exercício de um poder paralelo, que pretende intimidar aqueles que participam da administração da Justiça.
Como manter nos espíritos de todos os consorciados dessa sociedade amedrontada a confiança e a crença nas conquistas democráticas, assegurando que a lei prevalecerá sobre o crime e o respeito às instituições vencerá a intimidação? Com facilidade o discurso da resposta autoritária, com limitação de direitos fundamentais, como, por exemplo, a suspensão do habeas corpus, ganha foro, acreditando-se, com certa ingenuidade, que bastam medidas excepcionais, no plano da legislação, tal como o aumento das penas já elevadas, para coibir o crime organizado.
A magistratura passa por um difícil desafio: manter a serenidade e a equanimidade no julgamento dos réus de crimes violentos, sem deles fazer o desaguadouro das justas dores decorrentes da perda revoltante de um colega ilustre, exemplo de homem dosado pela busca do justo. De outro lado, como assinalou a jovem viúva, também magistrada, não é hora de vacilar e de renunciar à missão de julgar apreciando com rigor os fatos e os homens que merecem o rigor como justa retribuição.
A situação em que vivemos constitui um paradigma de situação-limite, em que valores se põem em conflito, pois o desejo de vingança seduz a se deixar levar pelo radicalismo permissivo da violência policial, da tortura, da quebra da presunção da inocência, da limitação dos direitos dos presos e dos processados -única via, dizem, para restabelecer o controle da criminalidade. Este conflito se aguça quando assoma às nossas mentes a lição da experiência, indicando que a legitimação da violência oficial sabe-se como e por que começa, mas não se sabe como e por que se de- senrola no tempo, tornando, na verdade, vitoriosos os bandidos cujos valores negativos passam a ditar a ação estatal.


Considero essencial o estabelecimento de forças-tarefas voltadas aos diversos segmentos do crime organizado


Não se pode, portanto, neste momento de emoção, com os espíritos conturbados, buscar respostas de mero valor simbólico para contentar a população transformada em platéia manipulável por meio de artifícios e factóides.
O rigorismo penitenciário aos que cometem falta grave já está previsto na Lei de Execução Penal, devendo-se estabelecer, como consta de projeto modificativo dessa lei, a previsão de faltas gravíssimas, sujeitas a prazo de reabilitação para a obtenção de qualquer benefício.
A limitação de entrevista dos presos com advogado a uma semanal é aconselhável, podendo o patrono, no entanto, justificar a urgência de mais outro encontro na mesma semana para colher dados ou informações necessários à defesa. Recolhido Fernandinho Beira-Mar à Superintendência da Polícia Federal, em Brasília, havia dias em que se entrevistava com sete advogados, podendo-se imaginar que um deles talvez seria apenas veículo de notícias com a estrutura criminosa em ação no mundo livre, razão pela qual a limitação é aconselhável, sem que tal constitua afronta à advocacia, a ser exercida como função essencial à realização da Justiça.
Não serão, todavia, essas medidas por si só eficazes para combate ao crime organizado, dirigido por criminosos presos. Sugiro, então, que se tipifique a figura penal do crime organizado, havendo projeto em tramitação no Congresso, apresentado com base em sugestão de comissão que presidi, à época de José Carlos Dias, ministro da Justiça, inclusive para adotar procedimentos especiais na execução da pena desse delito.
Considero essencial, porém, o estabelecimento de forças-tarefas voltadas aos diversos segmentos do crime organizado, reunindo as polícias e o Ministério Público, cientificando-se o Judiciário dos caminhos da investigação, o que pode levar a resultados duradouros.
A força-tarefa que pretendi instaurar no Rio de Janeiro quando ministro da Justiça, mas logo abandonada, a não ser em face de medidas periféricas ao Rio, constitui um trabalho de inteligência e informação por via do qual se passa a conhecer a estrutura, o funcionamento, as ramificações e as ações do crime organizado, para a partir destes dados agir preventiva e repressivamente, quebrando seus pilares, suas fontes de fornecimento de dinheiro e de equipamentos, seus beneficiários, detectando seus protetores, especialmente na própria instituição estatal e mesmo no Judiciário.
A confiança constrói-se como fruto do exemplo continuado, decorrendo antes dos precedentes e da história do que de ações pontuais revestidas de excepcionalidade. É, portanto, o instante de busca do equilíbrio e de, sem atitudes de mero significado simbólico, avançar com inteligência na luta incessante contra o crime organizado, para que se obtenha ao longo do tempo o mais difícil: a manutenção da confiança da sociedade nas instituições democráticas.

Miguel Reale Júnior, 58, advogado, é professor da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique).


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