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JOÃO SAYAD
Neutro
Ia para as Índias, chegou ao Brasil. Fomos descobertos por acaso.
Se havia intenção, foi dissimulada. Cabral viveu e morreu sem ser reconhecido ou devidamente compensado pelo feito. Depois do Descobrimento, fomos deixados de lado por quase um
século . A narrativa heróica de "Os Lusíadas" -"As armas e os barões assinalados"- não se refere especificamente ao Brasil.
A Independência, em 1822, é narrada da mesma forma: uma carta chegada de Portugal precipita a decisão do
temperamental dom Pedro 1º, que já
havia sido aconselhado pelo próprio
pai para fazer a independência antes
que algum aventureiro a fizesse. O
"Grito do Ipiranga" de Pedro Américo, que está no Museu Nacional, é épico e eloqüente. Mas é usado apenas
para decorar as antigas caixas de lápis
de cor. O país é neutro: nem trágico,
nem épico, nem cômico, nem dramático.
Um país não é uma coisa homogênea. É composto de partes e peças que
se movem em ritmos e direções diferentes e contraditórias. Temos heróis:
os bandeirantes, pobres e mal-alimentados, o duque de Caxias, os tenentes
do começo do século passado, os gaúchos, o frei Caneca, Antônio Conselheiro, os guerrilheiros contra o governo militar, os xiitas do PT, os economistas-reformistas do PSDB. Também temos fundamentalistas. Mas a
resultante desses movimentos contraditórios compõe um sistema não-premeditado, involuntário, que chamamos Brasil. Que é neutro -descoberto por acaso, independente com o beneplácito da Coroa, que passou da ditadura para a democracia lenta, segura e gradualmente.
Ser neutro não é pouca coisa quando
fazemos o inventário das nossas vantagens competitivas no mundo atual,
religioso e fundamentalista.
Os americanos são protestantes e
muito sérios. A narrativa dos colonizadores americanos sobre sua vinda
para a América comparava a travessia
do Atlântico à travessia do mar Vermelho pelos judeus que fugiam do
Egito e chamavam os Estados Unidos
de Nova Jerusalém. O país foi fundado
como república da virtude -ainda
que hoje sejam acusados de desrespeito aos direitos humanos em Guantánamo e em Abu Ghraib e de espionagem doméstica sem autorização judicial.
Os mais cruéis conflitos do mundo
atual são narrados como histórias épicas da Bíblia: a conquista da Terra
Prometida, a luta entre filisteus e israelenses, o exílio na Babilônia, atualmente invadida pelos americanos; a
guerra civil entre os xiitas e sunitas é
narrada, hoje, a partir de conflitos que
se iniciaram no ano 700 da era cristã.
No Brasil, na semana passada, foram
definidos os candidatos à Presidência
da República. O presidente é candidato à reeleição com apoio condicional
dos críticos do seu partido à política
econômica. O candidato tucano é
apoiado pelos economistas-reformistas do PSDB, que anunciam outro
choque de capitalismo. Os petistas de
carteirinha e os social-democratas do
PSDB foram ultrapassados pelos partidos a que pertencem. O sistema político brasileiro produziu duas candidaturas neutras.
Não será difícil votar no dia das eleições. O resultado já está determinado.
O país continua neutro.
João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.
jsayad@attglobal.net
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