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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Inteligência brasileira
QUAL É hoje a vocação maior
do pensamento brasileiro?
O caminho a evitar é o percorrido pelas ciências sociais e pelas humanidades nos países do
Atlântico norte. Nas ciências sociais, a começar por economia, prevalece lá a racionalização do estabelecido: explicar o que existe de
maneira a confirmar a necessidade, a naturalidade ou a superioridade das instituições estabelecidas
e das soluções triunfantes. Nas disciplinas normativas -a filosofia
política e a teoria jurídica-, a humanização do inevitável: a justificativa da redistribuição compensatória e da idealização do direito como meios para suavizar estruturas
que não se sabe como reimaginar
ou reconstruir. Nas humanidades,
a fuga da vida prática: divagações e
aventuras no campo da subjetividade, desligadas do enfrentamento
da sociedade como ela é.
As três tendências fingem brigar
entre si. Aliam-se, contudo, na submissão à realidade atual. A mensagem é sempre a mesma: aceitar o
existente, cantar acorrentado. Cortam o vínculo, indispensável à razão, entre o entendimento do existente e a imaginação do possível.
No Brasil, estamos, em matéria
de alta cultura, a reboque disso. A
tendência racionalizadora predomina, feita, por sua vez, de três vertentes que confluíram para o mesmo fatalismo supersticioso. Um
neomarxismo que perdeu confiança tanto em seus dogmas como em
suas esperanças acabou como discurso para explicar por que nada
muda no Brasil, a não ser para assegurar a impossibilidade da mudança. As ciências sociais americanas
foram apropriadas para explicar
que o Brasil precisa fazer o que lhe
mandam fazer. E o velho determinismo culturalista de nossos ideólogos conservadores foi reanimado
para enfeitar com folclore o receituário do conformismo e da falta de
imaginação.
Já passou da hora de jogar tudo
isso fora. Para compreender nossa
experiência nacional, temos de
executar obra de pensamento de
valor universal. Identificar as estruturas, de organização e de consciência, que moldam nossa vida nacional. Reconhecer-lhes ao mesmo
tempo o peso e a contingência. Expor as contradições, as anomalias,
as brechas que fornecem oportunidades transformadoras. Mostrar
como nos podemos organizar para
diminuir o poder do passado sobre
o futuro e a necessidade da crise
para a mudança.
Dirão que nada disso pode acontecer no pensamento brasileiro antes de termos universidade séria e
condições para o trabalho intelectual. Os renascimentos da inteligência, porém, nem sempre esperam os meios; às vezes os antecedem. É o espírito, escreveu Goethe,
que faz o corpo.
www.robertounger.net
ROBERTO MANGABEIRA UNGER escreve às
terças-feiras nesta coluna.
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