São Paulo, terça-feira, 20 de março de 2007

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Inteligência brasileira

QUAL É hoje a vocação maior do pensamento brasileiro?
O caminho a evitar é o percorrido pelas ciências sociais e pelas humanidades nos países do Atlântico norte. Nas ciências sociais, a começar por economia, prevalece lá a racionalização do estabelecido: explicar o que existe de maneira a confirmar a necessidade, a naturalidade ou a superioridade das instituições estabelecidas e das soluções triunfantes. Nas disciplinas normativas -a filosofia política e a teoria jurídica-, a humanização do inevitável: a justificativa da redistribuição compensatória e da idealização do direito como meios para suavizar estruturas que não se sabe como reimaginar ou reconstruir. Nas humanidades, a fuga da vida prática: divagações e aventuras no campo da subjetividade, desligadas do enfrentamento da sociedade como ela é.
As três tendências fingem brigar entre si. Aliam-se, contudo, na submissão à realidade atual. A mensagem é sempre a mesma: aceitar o existente, cantar acorrentado. Cortam o vínculo, indispensável à razão, entre o entendimento do existente e a imaginação do possível.
No Brasil, estamos, em matéria de alta cultura, a reboque disso. A tendência racionalizadora predomina, feita, por sua vez, de três vertentes que confluíram para o mesmo fatalismo supersticioso. Um neomarxismo que perdeu confiança tanto em seus dogmas como em suas esperanças acabou como discurso para explicar por que nada muda no Brasil, a não ser para assegurar a impossibilidade da mudança. As ciências sociais americanas foram apropriadas para explicar que o Brasil precisa fazer o que lhe mandam fazer. E o velho determinismo culturalista de nossos ideólogos conservadores foi reanimado para enfeitar com folclore o receituário do conformismo e da falta de imaginação.
Já passou da hora de jogar tudo isso fora. Para compreender nossa experiência nacional, temos de executar obra de pensamento de valor universal. Identificar as estruturas, de organização e de consciência, que moldam nossa vida nacional. Reconhecer-lhes ao mesmo tempo o peso e a contingência. Expor as contradições, as anomalias, as brechas que fornecem oportunidades transformadoras. Mostrar como nos podemos organizar para diminuir o poder do passado sobre o futuro e a necessidade da crise para a mudança.
Dirão que nada disso pode acontecer no pensamento brasileiro antes de termos universidade séria e condições para o trabalho intelectual. Os renascimentos da inteligência, porém, nem sempre esperam os meios; às vezes os antecedem. É o espírito, escreveu Goethe, que faz o corpo.


www.robertounger.net

ROBERTO MANGABEIRA UNGER
escreve às terças-feiras nesta coluna.


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