São Paulo, sexta-feira, 20 de março de 2009

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JOSÉ SARNEY

Um papagaio de Nabuco

A QUESTÃO DA raça negra ficou muito tempo fora dos temas nacionais. Poucos homens públicos dela tratavam. O interesse era mais histórico e científico. Afonso Arinos foi o novo Nabuco no despertar do que significava o sofrimento e a segregação a que estavam submetidos.
A Lei Afonso Arinos trouxe o tema ao público. Tornou crime a discriminação racial e fez ver o negro como a população mais marginalizada do país. Juntei-me à sua visão e fui do grupo restrito que sempre achou ser a mancha da escravidão a pior de nossa história e que a Independência, como dizia José Bonifácio, não se completou porque não extinguimos a escravidão e não resolvemos a questão indígena, mantendo com esses a velha fórmula colonial do enfrentamento, responsável pela sua dizimação. Os escravos transformados em homens livres ficaram sem trabalho e sem destino, párias que se arrastaram por décadas, sendo até hoje entre os pobres os mais pobres.
Lutei por acharmos um caminho de ascensão da raça negra. Era presidente quando se comemorou o Centenário da Abolição e criei a Fundação Palmares, destinada a dar condições de levar a raça negra a sair da miséria e onde tratei do direito dos quilombolas. Infelizmente ela não alcançou todos os objetivos. Para sair do imobilismo, resolvi levantar a questão das cotas e apresentei o primeiro projeto de lei tratando do assunto: cota nas universidades e no serviço público. Infelizmente, este tema também se politizou, e a questão passou a ser um conflito de raça, o que não convém ao Brasil nem ao clima de convivência que sempre vivemos.
Minha iniciativa era uma visão humanista, e não uma bandeira de confronto político. Devemos voltar ao tema sem desvios. Não deixemos descambar para a politicagem uma causa tão nobre. O necessário é resolvermos os problemas do negro no Brasil, de modo a que aqui também cheguemos a um Obama brasileiro, um nosso Domingos ou João. Não se desvirtue o problema das cotas. Ele teve a grande vantagem de abrir o debate da ascensão da raça negra e assim deve ser encarado.
A Abolição custou muito. Que ela se complete. Foi a maior causa a unir a consciência nacional. Sua grande voz, Nabuco, foi bater em todas as portas e até fez amizades que duraram tempos na Anti-Slavery Society, a cujo secretário, seu amigo, agradava mandando papagaios de presente. Mister Allen, chamava-se, escrevia-lhe que o papagaio não falava e, por fim, que morrera com um câncer de garganta. Nabuco mandou outro. Este também não falava, mas um dia abriu o bico e disse à cozinheira: "Polly, a chaleira está fervendo".
Que não se deixe a chaleira ferver contra os negros.

jose-sarney@uol.com.br

JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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