São Paulo, sexta-feira, 20 de março de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A dor invisível

MARIA JOSÉ AMERICANO e MARCÍLIO SILVA PROA JR.


A queixa de dor é sagrada para o médico e, ao mesmo tempo, é recebida com desconfiança por parte da Previdência Social


DEFINE-SE por dor qualquer experiência sensorial desagradável. Seja de natureza física, seja emocional. Quando o ser humano vivencia o processo da dor, ele experimenta uma condição de indignidade tal que prejudica a capacidade de gerenciamento da própria vida.
A dor também é um importante dispositivo de alarme que nos avisa quando as coisas não vão bem. Por mais que os avanços da tecnologia tenham nos dado desde a possibilidade de observar imagens do cérebro humano em funcionamento até o mapeamento do genoma, o sintoma dor ainda permanece como item subjetivo da avaliação médica.
Nota-se que não existe tecnologia capaz de documentar o bem-estar e diferenciá-lo de um estado de dor. Em princípio, a dor de "uma saudade" é tão real e importante para o cérebro humano quanto a dor gerada por um martelo que errou o prego e atingiu o dedo. A partir daí, a comprovação da existência de dor em determinada pessoa depende de dois fatores: a declaração de quem sente a dor e a fé do ouvinte no declarante.
O que pode parecer simples para a lógica comum -o processo de creditação da existência de dor pela sociedade- na verdade é bastante complexo. Ainda mais quando estão em jogo questões previdenciárias e comprovação de incapacidade laboral.
A nossa cultura só acredita naquilo que é material e palpável. A queixa de dor é sagrada para o médico e, ao mesmo tempo, é vista com desconfiança pela Previdência Social. À primeira vista, bastaria ao médico comparar a queixa do doente com o banco de dados vigente para estabelecer um diagnóstico. Porém, para que determinada doença seja aceita e anexada ao banco de dados e reconhecida pela comunidade científica, decorre um tempo demasiadamente longo.
É necessário que haja um convencimento de toda a sociedade médica por meio do método científico para que se aceite determinada doença como fator causador de dor de maneira inequívoca. A comunidade científica fica de mãos atadas, pois, como o nosso "dolorímetro" ainda não foi inventado, os médicos veem-se, em alguns casos, sem nenhum exame para comprovar a existência do problema, passando a declaração médica a atuar como único elemento capaz de defender a existência da dor alegada.
Quem tem dor quer alívio e quem paga o benefício quer saber se a dor é real, o quanto é incapacitante e, além disso, uma prova material dessa incapacidade. Assim, a concretização do diagnóstico depende do médico assistente, que tem o compromisso de acolher a queixa e, se for o caso, de comunicar a instituição previdenciária.
Porém, na maioria das vezes, a autoridade previdenciária exige comprovação concreta da dor como forma de atestar incapacidade por meio de exames complementares, não bastando a simples declaração no laudo. O sistema previdenciário deve cumprir seu papel de regulador e crítico na concessão de benefícios, devido à ocorrência, mesmo que pequena, de casos de simulação e fraude.
É certo que os gestores desse montante estabeleçam normas e critérios para definir quem está apto ou não a trabalhar com esse mecanismo regulador entre o médico e a Previdência. Um denuncia a existência de dor e o outro a contesta, como forma de proteger os recursos das intenções escusas. São papéis lícitos e necessários, mas não há como negar a preponderância da parte que contesta, já que a ciência de nossa época não nos oferta o utópico "dolorímetro". A subjetividade da dor leva à imprecisão no reconhecimento de sua existência e quebra a imparcialidade e a acurácia da balança reguladora exercida por médicos e pela Previdência, com forte tendência ao contestador, pela simples dificuldade técnica de caracterizá-la em prova material.
Fantasias do imaginário público que se referem a abonos para quem nega benefício não são de forma alguma realidade. O levante popular contra a Previdência também é injusto. O grande desafio é separar o joio do trigo, para que aqueles que de fato estiverem doentes não tenham de pagar o preço da desconfiança, da injustiça e do rigor da sistemática pericial. Um bom exemplo é a doença conhecida como LER (lesão por esforço repetitivo). Diagnosticada em 1700 por Ramazine, até os dias de hoje é motivo de repúdio pericial. Existe um conflito entre o que o doente necessita, o que a Previdência pode arcar e o que a ciência pode provar.
Quem sabe se, no dia em que inventarmos o "dolorímetro", teremos de pagar mais benefícios do que a estrutura poderá suportar -e, aí, estaremos falidos? Ou será que nessa época o valor do trabalho estará mais relacionado a um ofício de vocação e arte, sem o contexto monetário e de sobrevivência atual? O dilema está lançado.

MARIA JOSÉ AMERICANO, 52, jornalista, é autora de "LER/Dort - O Desafio de Vencer".
MARCÍLIO SILVA PROA JR., 45, médico, é neurocirurgião e autor de "As Múltiplas Faces da Dor".



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