São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ratzinger e Bento 16

DENIS LERRER ROSENFIELD

A doença, a morte e o luto de João Paulo 2º mostraram não apenas o carisma desse papa mas a vitalidade de uma instituição que tem resistido ao tempo. Milhões de pessoas choraram o fim de seus dias, num grande espetáculo midiático que comoveu mentes e corações. Apesar de a religiosidade das pessoas ser dita hoje muito menor do que teria sido décadas atrás, não deixa de surpreender como ela consegue mobilizar muita gente, crente ou não.
João Paulo 2º, como talvez nenhum papa na história, soube aproveitar os meios midiáticos para destilar fé num mundo cada vez mais descrente das coisas do espírito. Ele soube, como nenhum outro, oferecer parâmetros, valores de conduta que, de uma ou outra maneira, concorde-se ou não com eles, ofereciam um ponto de referência, uma orientação para o pensamento e a ação.
Ao escolher o então cardeal Ratzinger como um dos seus assessores mais próximos, o papa quis fazer passar a mensagem de que o conservadorismo em questões dogmáticas, e inclusive morais, era uma necessidade intrínseca à preservação da igreja. Constataram que a chamada opção pelos pobres, tal como se concretizava na Teologia da Libertação, era muito mais uma opção política do que propriamente social ou teológica. O marxismo dentro do corpo doutrinário da igreja era uma semente que levaria, a longo prazo, à supressão dos princípios da religião cristã. Para os que, como João Paulo 2º, tinham sentido na carne a experiência comunista, a questão do poder e a ausência de valores morais do autoritarismo e do totalitarismo, no caso de esquerda, mostravam a verdadeira face desse novo Estado socialista.
Para Bento 16 e João Paulo 2º, ser progressista não significava -e não significa- defender o "socialismo real"; aliás, o único existente, se ser progressista quer dizer ser partidário dessa forma violenta de dominação dos homens. Enquanto um dos mais importantes cardeais brasileiros dizia que Cuba era um pequeno paraíso na Terra, eles já tinham plena consciência de que o desrespeito sistemático aos direitos humanos, a prisão e o fuzilamento dos opositores era a regra desse regime. Se ainda hoje, no Brasil, muitos têm em Cuba um exemplo do "socialismo democrático", eles já estavam comprometidos com a liberdade, pois sabiam que embarcar na aventura da Teologia da Libertação significava seguir um caminho "cubano", nos moldes daqueles que tinham sido seguidos na Polônia ou na ex-União Soviética. O que significaria, na verdade, ser progressista nessa perspectiva?


A sabedoria da igreja consiste precisamente no seu conservadorismo, na manutenção de suas instituições

A igreja é uma instituição de mais de 2.000 anos. Só ela teve uma tal longevidade, adaptando-se ao mundo, mas tentando, às vezes com as maiores dificuldades, ser leal aos princípios de sua fundação. O seu segredo se encontra provavelmente no fato de apenas lentamente ter incorporado exigências que se tornaram imprescindíveis com o desenrolar do tempo. A sua sabedoria consiste precisamente no seu conservadorismo, na manutenção de suas instituições, na sua organização jurídica e na sua abertura cautelosa às mudanças. Essas não podem ser abruptas, sob pena de porem em risco as suas próprias instituições. Uma igreja que mudasse constantemente, confundindo a moda com as exigências do tempo, sucumbiria rapidamente.
Antoine Arnauld, um dos mais importantes teólogos do século 17, dizia que as verdades da religião são imperecíveis, o que muda são os costumes de cada época. Se esses são frouxos e não se adaptam às verdades eternas, o problema reside nos costumes, que são transitórios e efêmeros, e não nas verdades, que são absolutas. Essa parece ser a chave teológica que guia Ratzinger, orientadora agora das ações do papa Bento 16.
Contudo cabe distinguir questões propriamente de princípio, que dizem respeito a verdades dogmáticas, das decisões da igreja que respondiam a problemas temporais dela própria. Assim, a instituição do celibato não é uma verdade sagrada, mas equacionou, na época em que foi criada, um problema específico, o da divisão dos bens da igreja, que via suas posses diminuírem em sucessões infindáveis. O que foi um problema de tratamento da herança não pode se tornar uma questão de princípio.
De uma maneira análoga, a ordenação das mulheres exige um reposicionamento da igreja, pois, se há igualdade entre os sexos, não há por que discriminar um em detrimento do outro. As ordens femininas foram sempre da maior importância dentro da igreja, não havendo, assim, razões para que os seus membros sejam considerados pessoas de segunda ordem.
A escolha de Ratzinger pelo conclave mostra que os cardeais optaram por uma igreja unificada do ponto de vista político e conservadora do ponto de vista teológico e moral. Diante de um mundo em profunda mudança, que tem modificado fortemente o cenário daquilo mesmo que se considera humano ou humanidade, a postura escolhida foi a de cautela, na perspectiva assinalada de um conservadorismo prudente.
A idade do novo papa introduz, ademais, um outro fator: seu reinado não pode, por razões biológicas, ter a mesma duração do anterior; assim, suas eventuais propostas de mudança ou suas omissões serão testadas e sujeitas a uma avaliação em um outro conclave.
Espera-se que o eminente teólogo Bento 16 saiba reconsiderar algumas de suas posições anteriores, relativas à moralidade, aprendendo com o tempo e distinguindo com maior perspicácia uma questão de princípio de uma propriamente política. Ao escolher um intelectual de prestígio, a igreja optou pelo pensamento.

Denis Lerrer Rosenfield, 54, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRS.
@ - denisrosenfield@terra.com.br


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