São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As cores do espetáculo

CRISTIANO AVILA MARONNA

Jogavam duas equipes de futebol, uma brasileira, outra argentina. Na transmissão televisiva, um locutor branco, em momento de rara iluminação, tem a impressão de que um zagueiro argentino branco ofendeu a honra do adversário, brasileiro e negro, proferindo insultos de cunho discriminatório no calor da refrega. Isso com base na indefectível leitura labial. De um falante da língua espanhola. "Roma locuta, causa finita".
A partir dessa impressão, o locutor, encarnando a indignação pátria, passa a açular as massas, com imagens repetidas "ad nauseam". O jogador brasileiro, expulso de campo, foi questionado pelo repórter branco se fora chamado de negro pelo argentino e respondeu que não diria nada, "para não dar ênfase". Não precisava. O locutor, por mais de uma hora de transmissão televisiva ao vivo para todo o país, deu toda a ênfase. A cruzada patriótica estava posta em marcha. E o Macaco Simão, desta feita, não estava à frente dela.
Um secretário branco, defronte ao seu televisor, como se fora um xerife de faroeste, sugestionado pela cruzada patriótico-televisiva do locutor, mandou um delegado branco -ele também (mais) um telespectador da apologética transmissão- prender o atleta argentino. Direito penal como "ultima et extrema ratio"? Nem pensar. Mas e a Justiça Desportiva, interrogação.
Parafraseando o locutor Fiori Gigliotti, assim que o árbitro apitou o final do jogo, o espetáculo começou. Ainda no gramado, o delegado deu voz de prisão, em portunhol, ao argentino, cercado por policiais brancos. Tudo ao vivo e em cores. Todas as cores. Um verdadeiro "Big Brother". Na TV, no rádio, na internet e no jornal, sem interrupção. Campeão de audiência.
O caso ganha repercussão internacional e as massas querem a Lei de Lynch. Ah, o show da vida é fantástico! Insuflada, a audiência quer sangue. O sangue vermelho do argentino branco. O exemplo brasileiro ao mundo nos enche de orgulho cívico verde e amarelo.
Nosso passado escravocrata pesa nas nossas consciências, necessitamos de um bode expiatório, de um satã para purgar nosso genuíno, porém dissimulado, preconceito hereditário. Nada melhor do que um branco. E argentino. E, ainda por cima, zagueiro. Vivas à xenofobia! No Brasil, não toleramos o racismo, não é mesmo?


Nosso passado escravocrata pesa nas nossas consciências, necessitamos de um bode expiatório

A discriminação e o preconceito ancestrais são um flagelo que se manifesta em todo o mundo. Todos devemos repudiar o racismo, deplorável sob qualquer aspecto. O que não dá para aceitar é a histeria, o frenesi e, especialmente, a hipocrisia espetacularizada.
O episódio dá azo a pelo menos duas reflexões. A primeira, e mais importante, diz com o encaminhamento da questão. As violências e arbitrariedades perpetradas dão a impressão de que, de uma hora para a outra, como em um surto psicótico coletivo, a punição antecipada passou a significar a solução de todos os males que afligem a lavoura nacional. Algema no irmão, digo, "hermano!". Lincha! E a torcida vibra. Olé!
A súbita epidemia de falta de bom senso foi atenuada pela intervenção de um juiz de direito branco. Mas um branco de rara sensibilidade. Que compreende, na sua integralidade, o sagrado papel do juiz como garante dos direitos fundamentais. De todos. Negros, brancos, amarelos e vermelhos. De qualquer pátria: somos todos apátridas (mas não afrátridas), reunidos pelo elo comum e recíproco da eminente dignidade humana. Salve a diversidade e o multiculturalismo!
Pertencemos todos à grande família humana, composta de seres imperfeitos. De todas as cores. E todos, sem exceção, temos direito à proteção contra o abuso do poder estatal.
Em um momento de catarse coletiva, é tranqüilizador saber que um juiz de direito, com voz eloqüente, fez prevalecer o império da lei. Prisão cautelar, só quando comprovadamente indispensável. Queimar hereges na fogueira caiu em desuso, para descontentamento de uns certos alguns. A Justiça só pode ser feita com um mínimo de serenidade, de equilíbrio. De imparcialidade. A presunção de inocência nasceu para todos, inclusive estrangeiros. Do contrário, liberticídio.
Um outro aspecto que merece reflexão é o modo como a mídia transforma o drama em novela. Os mercadores da miséria humana dançaram ao ritmo do tango argentino. Os vocalizadores da consciência nacional ferida, tais quais bustos falantes, vociferam a uma só voz: "Caterva de lunfardos", "boludos". "Argentinos racistas." E dá-lhe Brasil, il, il...
No fim, remédio para as conseqüências. Causas intocadas. "The reality show must go on." Ah, já ia me esquecendo: para não passar em branco, abaixo o preconceito. Dentro e fora de campo.

Cristiano Avila Maronna, 35, advogado, mestre e doutorando em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, é sócio de Maronna, Stein e Mendes Advogados, escritório responsável pela defesa de Leandro Desábato.
@ - maronna@msm.adv.br


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