São Paulo, segunda-feira, 20 de abril de 2009

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A boa prática médica

RAUL CUTAIT


Já se foi o tempo em que os médicos decidiam o que fazer com base apenas na experiência acumulada ao longo dos anos

HÁ POUCOS dias, ampla reportagem nesta Folha comentava recente publicação no prestigioso "Journal of the American Medical Association" que discorre sobre a credibilidade das diretrizes americanas para a cardiologia, mostrando que mais de 40% delas carecem de um grau de maior de confiabilidade científica. Essa informação merece algumas reflexões.
Já se foi o tempo em que os médicos decidiam o que fazer com base apenas na experiência acumulada ao longo dos anos, corroborada por limitadas informações científicas.
Com as centenas de milhares de artigos científicos publicados anualmente em revistas especializadas, chegam continuamente dados que permitem melhorar as práticas médicas. Mas chegam mesclados com dados irrelevantes ou impróprios, os quais levam os médicos a tomar condutas nem sempre adequadas.
A dificultosa depuração das informações médicas, associada à pouca disponibilidade de tempo para o estudo devido ao excesso de trabalho, faz com que um considerável percentual dos médicos conviva com o conflito da desatualização.
A boa nova é que, nesse cenário, consolidou-se a denominada medicina baseada em evidências, metodologia científica que avalia de forma criteriosa os dados disponíveis na literatura e define distintos graus de recomendação para métodos diagnósticos e terapêuticos de acordo com a geração dos dados.
Com essa ferramenta, sociedades médicas e instituições universitárias passaram a definir condutas padronizadas para as mais diversas situações clínicas, com o objetivo precípuo de melhorar a qualidade das práticas médicas. Complementarmente, criou-se um clima mais crítico no que tange à produção científica, estimulando o desenvolvimento de pesquisas clínicas com metodologia mais crível, o que tem trazido um incontestável avanço na formulação de condutas médicas.
Contudo, apesar de se conhecerem as melhores formas de produzir informações científicas, é preciso entender que nem sempre é possível utilizá-las, tanto pelas circunstâncias clínicas quanto por restrições éticas. Além disso, estudos patrocinados pela indústria de medicamentos, equipamentos e materiais de consumo podem ter vieses nem sempre facilmente perceptíveis.
Cabem aqui duas ponderações. A primeira: nenhuma verdade científica é definitiva, em razão da constante e rápida incorporação de novos conhecimentos e tecnologias. A segunda: mesmo menores graus de recomendação não implicam colocar as condutas sugeridas sub judice.
Por outro lado, é preciso entender que, no processo decisório, existem outras variáveis que são de grande relevância: a experiência e o bom senso do médico; as características clínicas e pessoais dos pacientes; o desejo do paciente de receber determinado tratamento; as condições locais das instituições em que o paciente é atendido, dando-lhe ou não acesso às condutas mais recomendadas; a possibilidade de o paciente ou a fonte pagadora, pública ou privada, custear os exames e o tratamento (vale lembrar que custos são hoje variável preponderante de qualquer algoritmo de atendimento).
Portanto, pode-se afirmar que as boas práticas médicas dependem de um conjunto de fatores: da existência de sólidos conhecimentos científicos; da formação e experiência do médico; do acesso do paciente a profissionais qualificados; do sistema de saúde que consegue pagar os custos do atendimento com qualidade.
Mas, mesmo quando tudo isso existe, nem sempre os resultados são favoráveis para o paciente, uma vez que a medicina, com toda sua ciência e sua arte, não consegue fugir do imponderável das doenças, principalmente das de maior complexidade, e dos fatores de risco que cada paciente apresenta e que interferem com a evolução clínica.
A medicina bem exercida depende do conhecimento, das pessoas envolvidas, do sistema e dos recursos econômicos. Contudo, o grande diferencial é a motivação do médico e dos demais profissionais de saúde de se envolverem com seus pacientes numa atitude de cumplicidade, dando o melhor de si em prol de um atendimento que os beneficie, no limite da competência humana e do conhecimento científico.


RAUL CUTAIT, 59, médico gastrenterologista, membro da Academia Nacional de Medicina, é professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).


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