São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Contra o dirigismo nos direitos autorais

ROBERTO CORRÊA DE MELLO


Por trás da proposta do governo, está o desejo de estatizar a arrecadação dos direitos autorais, com a criação de uma nova estatal

DOIS ARTIGOS recentemente publicados neste espaço abordaram de maneira oblíqua o tema dos direitos autorais no Brasil ("Piratas e conquistadores", em 22/4, de Aldo Pereira, e "Direitos autorais e acesso ao conhecimento", de Guilherme Carboni, Pablo Ortellado e Carolina Rossini, em 27/4).
Nenhum deles tocou no ponto crucial da questão: a proposta da nova lei de direitos autorais do Ministério da Cultura (MinC) carrega no ventre o embrião do dirigismo cultural.
A discussão tem orbitado em torno de questões como a descriminalização da cópia simples de livros ou de downloads de arquivos de áudio. Ou sobre suposta falta de transparência das associações ligadas à gestão coletiva dos direitos autorais, o que jamais existiu. Um debate pueril, que interessa exclusivamente ao MinC.
Não se falou ainda no que está por trás da proposta do governo: estatizar a arrecadação dos direitos, criando uma nova estatal: o Instituto Brasileiro de Direitos Autorais (IBDA), com a distribuição de 364 empregos.
Escritores, autores musicais, intérpretes, músicos, dramaturgos, artistas plásticos e atores brasileiros já estão trabalhando na formatação de um programa nacional de cultura que possa criar legítimos mecanismos incentivadores para os criadores, sem permitir flancos abertos ao intervencionismo alheio ao universo cultural.
Historicamente, o Brasil vem adotando institutos antropocêntricos para garantir ao criador a gestão de sua obra (música, literatura, artes visuais, dramaturgia, obra audiovisual), trazendo para o nosso ordenamento regras próprias ao direito de autor.
Outros países, principalmente os anglo-saxões, criaram uma estrutura jurídica diferente, mais afeita a atos empresariais, o "copyright".
Agora, os idealizadores da política flexibilizatória (tais como "copyleft", "creative commons", "free digital world"), atendendo a interesses de empresas disponibilizadoras de conteúdo por meio das novas tecnologias, afirmam que o direito dos criadores impede nosso povo de ter acesso aos conteúdos culturais.
Buscam propagar suas pretensões defendendo a necessidade de ingerência do Estado na vida dos autores. Desprezam as convenções internacionais (convenções de Berna, Roma e Genebra) ratificadas pelo Brasil e adotadas em nosso regime jurídico.
O legislador brasileiro teve sempre o cuidado de ouvir as pretensões dos responsáveis pela criação cultural brasileira. Foi assim que editou a lei de direito autoral (lei nº 9.610/98).
Lei moderna, elaborada pela inteligência brasileira e que tramitou, desde a concepção até o sancionamento, pelo Congresso Nacional.
Há retoques a fazer? Por certo existem, mas são pequenos, pois a lei veio consagrar ainda mais o espírito antropocêntrico do direito autoral e permitiu aos criadores que bem gerissem seus repertórios.
É exatamente essa dinâmica social que permite ao legislador recepcionar a pretensão de seu povo.
O que eles pretendem, agora, sob a desculpa da consulta popular, é criar mecanismos de controle da produção intelectual. As consultas são feitas de maneira dirigida, com a participação da "cultura livre".
Aqueles que têm interesse em receber maiores remunerações, aqueles que têm anseio de tutelar a criação intelectual e aqueles que pregam a desobediência legal certamente influenciam os ingênuos e, devidamente municiados de argumentos estranhos ao nosso ordenamento jurídico, buscam transferir ao Estado função e direito que não lhe competem.
A sociedade civil se organiza para elaborar um programa nacional de cultura e preservá-la, evitar o cartorialismo, agilizar mecanismos de fomento e solapar a intromissão nos direitos e garantias individuais.
O que se expressa nos dias de hoje é uma enorme confusão entre o "papel do Estado" e os interesses governamentais. Espera-se do futuro governo a execução de um programa de inteligência sem dirigismo e que não distribua verba pública para consagrar os acólitos e inibir as realizações daqueles que não compartilham a ideologia governamental.
Busca-se a paz social, não o aprofundamento do abismo ideológico.
Está na hora de explicitar ideias e de expurgar o intervencionismo. Aos artistas e intelectuais, o que lhes pertence. A cada um, o que é seu.


ROBERTO CORRÊA DE MELLO é presidente da Abramus (Associação Brasileira de Música e Artes), diretor da ABDA (Associação Brasileira de Direito Autoral), organizador do CNCDA (Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais) e membro do Grupo de Trabalho de Dramaturgia, Literatura e Audiovisual da Cisac (Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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