São Paulo, terça-feira, 20 de junho de 2000


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ARIANO SUASSUNA

Cultura e televisão

Em 1998, Nelson Aguilar me procurou, convidando-me para ajudá-lo na exposição que, comemorando os 500 anos da presença portuguesa no Brasil, iria realizar-se, agora em 2000, na Bienal de São Paulo. No primeiro momento, envaidecido e honrado pela escolha, pensei em aceitar. Mas, depois, pensando melhor, desculpei-me, pedindo-lhe que me dispensasse: achava que não reunia em mim as condições pessoais e as qualidades que se exigiam para a tarefa.
Sou muito grato a Nelson Aguilar pela delicadeza com a qual aceitou minhas ponderações e a aparente deserção que eu praticara. E, por um artigo aqui publicado por Otavio Frias Filho, vi que agira bem. Eu não fizera falta na exposição, na qual foi contemplada toda a arte brasileira, desde a rupestre, a barroca e a popular até a contemporânea.
Agora, por intermédio de uma amiga, recebi um generoso presente, constituído por todos os catálogos da exposição. Por eles vi que pessoas como Emanoel Araújo e Frederico Pernambucano de Mello, com grande competência, excederam, de muito, qualquer coisa que eu tivesse podido fazer para não decepcionar aquele que me convidara.
Entretanto, junto com o presente, a amiga mandou-me uma carinhosa carta e o recorte de uma entrevista de Silvio Santos -entrevista essa que me mostrou, mais uma vez, como é penosa e difícil a luta de todos nós que sonhamos com uma televisão brasileira e ligada à cultura. Enquanto a lia, a impressão que tinha era que, num pesadelo, eu estava assistindo a um diálogo de surdos e dementes. E, o que é pior, de certa forma tomando parte nele, ao escrever aqui.
Na entrevista, Silvio Santos declara que o povo brasileiro é pobre e não tem, como os empresários, condições de viajar para a Europa ou para os Estados Unidos a fim de "ouvir ópera". Quer é se divertir, motivo pelo qual, na emissora dele, quem tem ibope mostra o que bem quer e entende. E passou a narrar o diálogo travado entre um censor do regime militar brasileiro e ele próprio. Diz Silvio Santos que , indo aos Estados Unidos, foi ver dois filmes pornográficos, o que fez "escondido de sua mulher". Ao voltar ao Brasil, recebeu, do censor, uma reclamação pelos "programas imorais" que o SBT estava exibindo. Respondeu que nos Estados Unidos vira coisa pior. E o censor -segundo ele, "dando-lhe uma lição de moral"- retrucou que, nos Estados Unidos, tendo dinheiro, um homem vê cenas como aquelas, fica excitado, sai e paga uma prostituta para saciar seu desejo. Mas, no Brasil, sem poder pagar a ninguém, sai e estupra a primeira mulher que encontra.
Li outro dia num jornal que o país governado pelo presidente Clinton é detentor de um dos maiores índices de estupro no mundo. Mas não vou alegar isso ao censor. Nem vou perguntar a Silvio Santos por que, tendo dinheiro e indo ao Estados Unidos, não foi ver a ópera "Don Giovanni", de Mozart, ou a suíte "Petrushka", de Stravinsky; e sim, escondido da mulher, "Garganta Profunda" e "O Diabo no Corpo de Miss Jones". Também não vou indagar se ele conhece realmente o povo brasileiro e sua arte, para ficar dizendo por aí o que é que as pessoas do Brasil verdadeiro desejam ou não desejam ver. Não vou fazer nada disso, porque, com dois cidadãos como os que travaram tal diálogo, não dá nem para começar a discutir um problema grave como esse.


Ariano Suassuna escreve às terças-feiras nesta coluna.


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