São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A falência da ocupação do Iraque

DEMÉTRIO MAGNOLI

No fim do mês, o poder nominal no Iraque será transferido das forças de ocupação para um governo provisório iraquiano. Como as tropas da coalizão permanecerão no Iraque, sob o comando de Washington, a transferência parece pouco relevante. Não é: ela assinala a derrota política da ocupação e acelera a retirada definitiva das tropas da coalizão.
A administração Bush definiu como objetivos da invasão do Iraque a instalação no país de um governo estável e alinhado com os EUA e a reorganização de conjunto da geopolítica do Oriente Médio. Sob a fórmula da "difusão da democracia" ocultava-se uma estratégia de estabilização da Arábia Saudita, neutralização do Irã e da Síria e pacificação da Palestina nos termos desejados pelo gabinete israelense de Ariel Sharon. O fracasso no Iraque significa o abandono do conjunto desses objetivos estratégicos e abre uma nova etapa de turbulência no Oriente Médio.
A derrota da ocupação esboçou-se na impotência da coalizão diante da resistência armada no Iraque, conduzida essencialmente pelo aparato do partido Baath. Depois, as revoltas simultâneas dos sunitas de Fallujah e do clérigo xiita Moqtada al Sadr obrigaram as forças da coalizão a, pela primeira vez, negociar com a insurgência. Fallujah tornou-se, para todos os efeitos, uma "cidade libertada", e as tropas americanas também tiveram que abandonar as áreas centrais de Kerbala e Najaf. O recurso desesperado a antigos generais de Saddam Hussein, designados para manter a ordem no "triângulo sunita", foi corretamente interpretado no Iraque como o início da retirada americana.
Mas o golpe final aconteceu nos EUA, não no Iraque. A divulgação das imagens do centro de tortura sistemática instalado no presídio de Abu Ghraib desmoralizou a ocupação perante a opinião pública americana. Nos processos contra os guardas do presídio, emergem indícios que conectam Abu Ghraib ao Afeganistão e à prisão "off shore" de Guantánamo. Os fios da rede global de tortura parecem conduzir ao Pentágono e à própria Casa Branca, onde foi criada a figura jurídica esdrúxula do "combatente ilegal" para circundar os tratados internacionais sobre a guerra e os direitos humanos.
Depois de Abu Ghraib, a administração Bush optou pela retirada planejada, renunciando aos objetivos originais da invasão. A negociação da resolução da ONU sobre a transferência do poder e a formação do governo provisório iraquiano revelaram as dimensões da derrota. No Conselho de Segurança, Washington recuou três vezes, até se resignar a uma resolução que, implicitamente, confere ao governo provisório a prerrogativa de decidir pela retirada antecipada das forças de ocupação. No Iraque, o Conselho de Governo, um corpo fantoche iraquiano inventado pela coalizão, adquiriu súbita vitalidade e, atropelando o enviado da ONU e o mandatário americano, designou o núcleo do novo governo provisório.


A derrota da ocupação esboçou-se na impotência da coalizão diante da resistência armada no Iraque
Paul Bremer, dos EUA, e Lakhdar Brahimi, da ONU, articulavam um governo de tecnocratas, capaz de aparentar alguma independência diante da coalizão. Mas o Conselho de Governo, determinado a controlar o aparelho de Estado em construção, indicou nomes da sua própria camarilha para os postos-chave. O produto da operação é um gabinete constituído no essencial por figuras que são vistas no Iraque como títeres de Washington. O primeiro-ministro, Iyad Allawi, trabalhou como agente da CIA. O presidente é protegido da monarquia saudita. Os ministros das Finanças e do Petróleo são exilados com carreiras ligadas aos conglomerados empresariais anglo-americanos.
O golpe branco do Conselho de Governo pode custar caro à coalizão, pois o novo governo provisório terá de comprar a legitimidade ecoando a voz das ruas. Ghazi Yawar, o presidente, já começou a criticar as forças ocupantes, e Allawi entrou em choque com Bush exigindo a entrega de Saddam Hussein e os outros prisioneiros do antigo regime à custódia iraquiana. Chegará o dia em que os fantoches, em meio ao fogo cruzado entre as forças da coalizão e as da insurgência, terão de solicitar a retirada das tropas ocupantes. Então, a retirada ordeira poderá se transfigurar em debandada humilhante.
Há 15 anos, o fundamentalismo islâmico celebrou a vitória da "primeira jihad" contemporânea, que foi a retirada soviética do Afeganistão. Aquele evento seminal está na origem da Al Qaeda e da difusão do terror islâmico. O desmoronamento do castelo iraquiano é acompanhado em todo o mundo muçulmano e, em larga medida, narrado como a "segunda jihad". As forças da coalizão deixam, atrás de si, um Oriente Médio atravessado por uma guerra civil internacional, entre os regimes alinhados com o Ocidente e a insurreição fundamentalista. A "terceira jihad" está em marcha na Arábia Saudita. Os seus sinais, largamente ocultados pelo noticiário truncado da mídia ocidental, transparecem com nitidez nas cotações internacionais do barril de petróleo.
A "guerra ao terror" de Bush é o cenário geopolítico e ideológico ideal para a difusão da mensagem escatológica de Osama bin Laden. Não é casual que os sites do fundamentalismo islâmico expressem, abertamente, a preferência de Alá por uma vitória de Bush nas eleições presidenciais americanas.

Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP.


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