São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Por uma nova regulação social

ZANDER NAVARRO

Estudioso da globalização, David Held destacou recentemente o divisor histórico em que estamos ora imersos, sob o qual fermenta uma combinação de bloqueios que poderão produzir catastróficas conseqüências. Entre esses fatores, o possível colapso das normas relativas ao comércio internacional; o iminente fracasso das "metas do milênio", estabelecidas pelas Nações Unidas como objetivos mínimos de mudança, especialmente em relação à pobreza; a ameaça do aquecimento global e suas manifestações climáticas cada vez mais corriqueiras; e, também, o ataque sistemático aos organismos e tratados de cooperação multilateral, particularmente pelos Estados Unidos. Em momentos cruciais como este, adverte, escolhas urgentes precisam ser operadas.
Como chegamos a esse ponto crítico, marcado pela instabilidade e o aumento da insegurança, dos conflitos e dos riscos que permeiam a vida social, a sociabilidade humana sendo transformada em uma "fábrica de fragmentação"? Como a sintética, mas aguda, definição de sociedade oferecida por Boaventura de Sousa Santos, qual seja, "um arranjo de expectativas estabilizadas", foi sendo lentamente arruinada no período contemporâneo?
Provavelmente, a melhor explicação seria examinar o passado e verificar que os últimos 40 anos observaram não a destruição dos padrões de regulação social, o que seria equívoco, pois nenhuma sociedade sobrevive sem um "modo de regulação", mas um deslocamento das fronteiras dessas formas que tornam coesas as diversas sociedades, um movimento desestruturante que afetou todos os rincões do planeta.
O ponto de partida foram os decisivos anos da década de 1970, quando não apenas o esteio econômico que sustentava a economia mundial, o padrão-dólar, foi retirado, mas as conseqüências políticas do fim do ciclo de expansão e crescimento que caracterizara o pós-guerra se tornaram evidentes. Entre aqueles anos e os dias atuais, uma nova geração vem experimentando uma série de processos cujo ineditismo conforma as marcas do presente, algumas sombrias, outras de inegável natureza emancipatória. A lista seria imensa, não podendo ser aqui esmiuçada, mas são notórias as suas manifestações, em todos os planos sociais.


A regulação existente até o final dos anos 70 foi perdendo sua aderência aos controles normativos e à visibilidade pública
Nesta época rapidamente mutável, a regulação existente até o final dos anos 70 foi sendo deslocada, perdendo sua aderência aos controles normativos e à visibilidade pública. Moveu-se para esferas particularistas, quase sempre na penumbra, instituindo uma outra regulação, muitas vezes politicamente ilegítima, mas sempre afirmando o "mercado" como o lócus privilegiado das decisões regulatórias relativas à economia e à política. Essa, sim, é a verdadeira herança maldita a ser enfrentada.
Em face dos impasses crescentes, requer-se atualmente uma outra forma de regulação. Mas esta será, necessariamente, uma regulação democrática e, para ser bem-sucedida, precisa ser republicana. Por quê? Diferentemente do que houve no passado, surgiram duas condições novas para fundamentar esse cenário de definições.
Primeiramente, todos os humanos, atualmente, vivem em sociedades de mercadorias, a mercantilização da vida social sendo ubíqua e criando novas noções de consumo e necessidades. Vivemos sob a cultura do mercado e todos somos, direta ou indiretamente, afetados pelas formas capitalistas da vida econômica. Secundariamente, deixou de existir um contraponto societário, a noção de socialismo ou uma "nova sociedade" passando a fazer parte de um imaginário cada vez mais remoto, senão inexistente. Temos, isso sim, uma ampla "variedade de capitalismos", e sobre essa diversidade é que se encontram as chances de transformação social.
Mas há outra marca notável desse período histórico, que é a expansão de uma ordem política democrática e, contrariando os pessimistas, essa forma de governo e as práticas sociais decorrentes abrem amplas chances de montagem de uma nova regulação social. Construí-la se apresenta como o maior desafio de nossos dias, inclusive por impor um complexo ordenamento internacional. Mas, no plano nacional, é igualmente um quadro de extraordinária exigência operacional.
No Brasil, por exemplo, exigiria que nossas elites políticas percebessem o evidente atraso associado à ideologia pré-moderna do comunitarismo católico, também rompendo com a cultura política populista e confrontando diretamente os corporativismos da vida social brasileira. Especialmente, exigiria a compreensão acerca da necessidade de uma regulação que não propusesse apenas a ampliação do Estado, como vem sendo feito, pois esta passou a ser só uma parte da solução, as demais incluindo outros mecanismos de controle social, inclusive os não-intencionais e os processos públicos não-estatais.
Parodiando Marx, em um contexto como esse, nossas elites políticas estariam preparadas para compor a "música do futuro", vencendo a escassa legitimação das formas atuais de representação e a generalizada inoperância da ação governamental?

Zander Navarro, 53, é professor visitante da Universidade de Sussex (Inglaterra) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS.


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