São Paulo, segunda-feira, 20 de setembro de 2004

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JOÃO SAYAD

Um quarto de 1%

O regime de metas de inflação é uma forma educada de falar.
O Banco Central tem poderes ilimitados para fixar juros e determinar a disponibilidade de crédito doméstico, a taxa de câmbio e o desemprego da economia. Entretanto carece de legitimidade política.
O regime de metas de inflação dá uma aparência aceitável ao poder soberano do Banco Central. É a homenagem que o dinheiro presta à democracia (assim como a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude). O regime de metas de inflação é um rito de legitimação.
Primeiro, apresenta a decisão sobre os juros como "científica". Três equações prevêem qual será a inflação futura a partir da taxa de juros fixada hoje pelo Copom. O Copom é composto por diretores do Banco Central e ninguém mais, como os únicos responsáveis e autorizados a interpretar o modelo. Baseado em equações, a decisão se torna "científica" e inquestionável.
Depois, reproduz a liturgia religiosa. Reúne-se, em geral, na terceira quarta-feira de cada mês (como muitos dias santos de guarda -40 dias depois da Páscoa). A reunião é registrada em ata e divulgada alguns dias depois. Os mercados fazem a exegese da ata.
O regime é adotado em nome da transparência das decisões. Mas disfarça o caráter discricionário da decisão, que pode determinar os juros dentro de uma ampla faixa de valores.
Não há nada de errado com isso tudo. Nem as observações acima devem ser consideradas irônicas. Poder exige liturgia. Inclinamo-nos diante dos reis, que carregam um cetro na mão direita e usam coroa.
O que está errado é confundir ciência e realidade ou se tornar escravo da liturgia. Liturgia e modelo foram criados para que a decisão do Banco Central ganhe legitimidade. Mas a legitimidade depende mais da sabedoria das autoridades monetárias e do reconhecimento que instituições são tão importantes quanto frágeis.
Sendo forma de falar, deveria ser parcimoniosa. Na semana passada, o Banco Central esperava que os "spreads" bancários caíssem. Ora, se os "spreads" caíssem, o que o Banco Central tenta fazer -reduzir a demanda com juros altos- seria desfeito pelos bancos, que cobrariam juros menores. Se viesse a acontecer, os juros altos seriam apenas um estorvo para os contribuintes que os pagam e inócuo para combater a inflação.
Com a falação, os juros não se reduzem para que fique bem clara a soberania do Banco Central. A decisão do Banco Central acaba por revelar, sem pudor, o que o regime de metas de inflação queria disfarçar. O aumento de juros da semana passada, ainda que irrelevante, um quarto de 1%, custou R$ 300 milhões por ano. Rito e ciência não conseguem legitimar decisão tão cara.
Mágicos são proibidos de revelar os segredos das mágicas. Médicos não falam dos placebos. Economistas não deveriam falar da fragilidade do seu conhecimento, principalmente sobre inflação. Junto-me à falação por receio que o regime, como vem sendo administrado, perca legitimidade. E, no momento, ele é imprescindível.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.

E-mail: jsayad@attglobal.net


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