São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

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CIPOAL LEGISLATIVO

A herança cartorialista ibérica nos legou a indisfarçável tendência de tentar resolver toda e qualquer dificuldade que se interponha em nosso caminho editando uma lei ou baixando um decreto. A estratégia, é claro, não apresenta os resultados esperados, do que dá por fé a miríade de problemas com os quais o país convive há 500 anos.
O pior é que ninguém se lembra de revogar a profusão de normas quando o problema deixa de existir ou quando as regras são superadas por novas leis ou mesmo pela sucessão de Constituições -já estamos na sétima. O resultado é um cipoal legislativo frondoso e freqüentemente contraditório, paraíso para advogados dispostos a protelar um processo.
Nesse contexto, é mais do que oportuna a iniciativa da Câmara Municipal de São Paulo de promover uma consolidação da legislação da cidade. Nesta semana, na primeira etapa do processo, foram extintas 3.680 leis aprovadas entre 1892 e 1947 que já não faziam sentido. Foram revogadas normas como a de 1896 que obrigava a "assignalar nos cemitérios municipaes as sepulturas dos criminosos celebres".
Seria útil se empreendimentos de mesmo teor fossem estendidos para outras cidades e ampliados para os níveis estadual e federal. Como já observava Tácito nos primeiros séculos de nossa era, "Corruptissima res publica, plurimae leges" (o mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis).
Mais importante do que promover esses necessários mutirões, porém, é criar mecanismos permanentes que evitem o acúmulo de normas ultrapassadas. Algumas soluções são inquietantemente simples. Por que em vez de apenas escrever "revogam-se as disposições em contrário" ao pé de cada peça legislativa vereadores, deputados e senadores não indicam explicitamente quais as leis que deixam de valer no todo ou em parte?
Também o controle constitucional carece de aprimoramento. Quando o Supremo Tribunal Federal, no curso do julgamento de um caso concreto, considera uma dada norma inconstitucional, ele comunica o fato ao Senado, pedindo que a lei seja suspensa. Só que, normalmente, o Legislativo nada faz. Mesmo quando a lei é julgada inconstitucional numa ação direta de inconstitucionalidade (controle abstrato), não é raro que a norma permaneça em vigor, dando a juízes singulares a possibilidade de não acompanhar o juízo do STF.
Espera-se que a introdução do chamado efeito vinculante, que obriga cortes inferiores a seguirem a interpretação do Supremo em certos casos, sirva para minorar efeitos mais perversos dessa distorção. É necessário, porém, avançar mais.
O ideal seria que abandonássemos a idéia de que toda dificuldade social, política ou econômica pode ser contornada com golpes legislativos, mas isso parece ser pedir demais. Contentemo-nos com mutirões como o da Câmara paulistana. Espera-se apenas que ninguém tenha a idéia de andar pelas ruas de São Paulo num carro de boi, proibição que deixou de vigorar após 111 anos.


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