São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 2005

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ELIANE CANTANHÊDE

Contrastes

BRASÍLIA - Minha filha mais velha, Manuela, foi mordida por um cão às 9h de sábado, o que nos deu, a ela e a mim, uma boa chance de sair do nosso mundo para ver -ou sofrer- um pouquinho no mundo real. Falo sobre a absurda diferença entre o hospital particular e o público.
Num, eficiência e rapidez, inclusive para assinar os boletos do plano de saúde para clínica geral, ortopedia, radiografia. No outro, responsável pela vacina anti-rábica, o oposto. Nada anda. Pior: só anda se você é, ou parece, "diferente".
Éramos só quatro pessoas na fila, mas nenhuma era chamada. Quarenta minutos depois, estrilei. O atendente desculpou-se: "Sei não. Eu só ponho o pedido na mesa do médico". Mais uma pergunta: "Cadê o médico?" E o rapazinho: "Os três saíram para almoçar". Na mesma hora!
Tentei "levantar as massas", mas os "pacientes" continuaram "pacientemente" sentados, calados, olhares perdidos. E eu reclamando. Ela já estava medicada, só faltava a vacina. Pois não é que funcionou? Logo apareceu um residente, competente até, e ela foi enfim vacinada.
Voltamos para casa às 14h30, prostradas. Minha filha, triste e dolorida. Eu, com uma profunda sensação de vergonha e de impotência. Fomos atendidas porque somos "diferentes". Esperneamos, e é uma questão de cor, de roupa, de jeito de falar.
Ontem, Lula reuniu seus ministros para discutir a macroeconomia (recessiva), a infra-estrutura (abandonada), as políticas sociais (trocadas pelo Bolsa-Família) e a articulação política (retumbante fracasso). Sobrou o discurso -de candidato.
Esse é o verdadeiro "pacto das elites": a madame esbraveja no hospital público (igual para todos...) e a esquerda chega ao poder como todos os demais. Tranca-se nos palácios, diz que tudo está uma maravilha e só pensa na reeleição.
As pessoas comuns continuam na fila para se tornar cidadãos com direito a educação, a saúde, a emprego, a gritar pelos seus direitos. A simplesmente serem "iguais".

@ - elianec@uol.com.br


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