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ELIANE CANTANHÊDE
Contrastes
BRASÍLIA - Minha filha mais velha, Manuela, foi mordida por um cão às
9h de sábado, o que nos deu, a ela e a
mim, uma boa chance de sair do nosso mundo para ver -ou sofrer- um
pouquinho no mundo real. Falo sobre a absurda diferença entre o hospital particular e o público.
Num, eficiência e rapidez, inclusive
para assinar os boletos do plano de
saúde para clínica geral, ortopedia,
radiografia. No outro, responsável
pela vacina anti-rábica, o oposto.
Nada anda. Pior: só anda se você é,
ou parece, "diferente".
Éramos só quatro pessoas na fila,
mas nenhuma era chamada. Quarenta minutos depois, estrilei. O atendente desculpou-se: "Sei não. Eu só
ponho o pedido na mesa do médico".
Mais uma pergunta: "Cadê o médico?" E o rapazinho: "Os três saíram
para almoçar". Na mesma hora!
Tentei "levantar as massas", mas os
"pacientes" continuaram "pacientemente" sentados, calados, olhares
perdidos. E eu reclamando. Ela já estava medicada, só faltava a vacina.
Pois não é que funcionou? Logo apareceu um residente, competente até, e
ela foi enfim vacinada.
Voltamos para casa às 14h30, prostradas. Minha filha, triste e dolorida.
Eu, com uma profunda sensação de
vergonha e de impotência. Fomos
atendidas porque somos "diferentes".
Esperneamos, e é uma questão de cor,
de roupa, de jeito de falar.
Ontem, Lula reuniu seus ministros
para discutir a macroeconomia (recessiva), a infra-estrutura (abandonada), as políticas sociais (trocadas
pelo Bolsa-Família) e a articulação
política (retumbante fracasso). Sobrou o discurso -de candidato.
Esse é o verdadeiro "pacto das elites": a madame esbraveja no hospital
público (igual para todos...) e a esquerda chega ao poder como todos os
demais. Tranca-se nos palácios, diz
que tudo está uma maravilha e só
pensa na reeleição.
As pessoas comuns continuam na
fila para se tornar cidadãos com direito a educação, a saúde, a emprego,
a gritar pelos seus direitos. A simplesmente serem "iguais".
@ - elianec@uol.com.br
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