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São Paulo, terça-feira, 21 de janeiro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Passado e futuro do governo Lula

1. O tema latente na sucessão presidencial foi "mudança do modelo econômico". Concordavam os quatro principais candidatos na necessidade de criar condições para diminuir nossa dependência dos ciclos de liquidez na economia mundial e para democratizar o acesso às oportunidades de emprego e de ensino.
2. Apoiei a candidatura de Ciro Gomes por identificar nela a disposição mais clara de levar a sério o discurso de mudança do modelo.
3. Inviabilizada essa candidatura e previsto Serra como concorrente de Lula no segundo turno, a prioridade era defender as instituições republicanas. Apesar dos méritos do candidato oficial, sua eleição se arriscava a sufocar, num continuísmo carregado de intimidação, a ainda frágil democracia brasileira. Cabia aos dois outros candidatos de oposição renunciar a tempo de definir a eleição no primeiro turno, evitando o risco de golpes baixos que rondava o segundo turno.
4. Esse risco acabou por não se consumar, não sem alguns sustos. Frustrou-se, porém, o outro objetivo a ser viabilizado pela retirada de Ciro e de Garotinho: pactuar a composição e, portanto, o rumo do futuro governo e impedir que se adiasse para as calendas gregas a mudança do modelo. Desobrigado, o novo presidente organizou governo da ala dominante do PT, que reduziu as outras forças progressistas a satélites. Deu prioridade a duas propostas: reforma da Previdência, orientada no mesmo sentido fiscalista da reforma buscada pelo governo anterior, e campanha humanitária contra a fome. Seria apenas transição. As supostas transições, porém, costumam se perpetuar.
5. O governo do PT já teve a virtude de demonstrar seriedade em três compromissos de importância capital: com a moralização do Estado, com o socorro aos mais pobres e com a atuação ousada do Brasil no mundo, embora esse último compromisso ameace ser desvirtuado por iniciativas provocadoras, de alto custo e de pouco benefício.
6. A divisória definidora do destino do governo está nos temas que compõem o cerne de um projeto libertador no Brasil hoje: aumento do salário real e democratização do acesso ao trabalho e ao crédito; mobilização da poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo; ampliação de ilhas de excelência no ensino público para radicalizar a meritocracia e fundação das instituições de uma democracia de alta energia, que gerem partidos políticos fortes, limitem a influência do dinheiro na política e engajem os cidadãos, de baixo para cima, na solução dos problemas coletivos. Sem redistribuir renda e poder, nenhum país na história moderna se engrandeceu.
7. Duas pontes podem ligar o programa de transição ensaiado pelo governo do PT e esse projeto democratizante. A primeira ponte é econômica: para evitar a crise cambial, equacionar a dívida pública e baixar os juros, é preciso contar com mais poupança e com mais dólares. Controles cambiais podem vir a ser necessários. A segunda ponte é política: para avançar em reformas democratizantes, é preciso reconciliar a negociação política e social com a pressão que resulta da mobilização popular. A melhor maneira de evitar que a "transição" se torne permanente é insistir no que precisamos fazer para não ficar de joelhos diante dos interesses poderosos, fora ou dentro do Brasil.
8. A tarefa dos aliados críticos do governo do PT é nos organizarmos, intelectual e politicamente, para apoiar e para monitorar o governo. E, se o governo malograr no esforço transformador, para impedir que o eixo da política brasileira, na forma de alternância entre o PSDB e o PT, se reduza a rodízio entre duas vertentes de um mesmo projeto, incapaz de libertar os brasileiros.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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