São Paulo, quinta, 21 de janeiro de 1999

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Começando mal

OTAVIO FRIAS FILHO

Caminha não era o escrivão da frota. A ração diária consistia de carne-seca, biscoito e um litro e meio de água e de vinho. No primeiro contato entre portugueses e tupiniquins, na praia, os dois lados gritaram sem se ouvir por causa do estrondo das ondas. Antes de prosseguir para a Índia, Cabral costeou até Cabo Frio.
O maior interesse dos dois livros que o jornalista Eduardo Bueno lançou sobre o descobrimento é trazer à tona uma profusão de detalhes assim. Não há "novidade" nesses trabalhos de divulgação. O mérito é que o autor, depois de aparentemente esgotar a bibliografia, converteu suas leituras em narrativa viva, jornalística.
A caminho da Índia, em 1497, Vasco da Gama se afastou da África, na altura do golfo da Guiné, numa manobra criada pelos portugueses a fim de evitar as correntes contrárias da região. Registrou a aparição de aves no meio do oceano, indício de ilhas a oeste. Ao que tudo indica, Cabral foi incumbido de verificar sua existência.
A missão principal era instalar entrepostos comerciais na Índia, que Cabral foi, de fato, o segundo a atingir pela circunavegação da África. Eduardo Bueno conta que dezenas, talvez centenas de cartas seguiram para Portugal, junto com a de Caminha, no barco destacado para informar sobre a descoberta de uma "ilha" atlântica.
Somente três desses documentos sobreviveram, porém, aos incêndios que devastaram Lisboa em 1580 e 1755, este último em consequência do célebre terremoto que indignou Voltaire. A carta de Caminha ficou famosa porque ele era, como ressalta Bueno, um ótimo repórter. Graças a ele o episódio foi bem documentado.
Caminha chega a observar, por exemplo, que os dois índios que dormiram a bordo não eram circuncidados -detalhe significativo para os viajantes ao sugerir que não havia influência de seus tradicionais inimigos, os muçulmanos, no local. Obcecados com a Índia, porém, os portugueses não deram importância ao achado.
Enviaram mais duas frotas, em 1501 e 1503, que margearam o litoral brasileiro em busca de bens comerciáveis. O resultado é descrito por Américo Vespúcio, um dos chefes das expedições: "Nessa costa, não vimos coisa de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil". O Brasil foi esquecido por cerca de 30 anos.
Foram nossas primeiras "décadas perdidas", no dizer do autor. Foi só quando um punhado de espanhóis conquistou o Peru e as riquezas minerais dos incas que surgiu o interesse de atingir a região subindo o rio da Prata, assim batizado nessa expectativa, ou cortando o interior do Brasil. Esforços que se frustraram também.
Nesse lapso, a "Terra dos Papagaios" -nosso primeiro nome- foi visitada por traficantes de índios e degredados, deixados aqui a fim de colher informações para a Coroa, em troca da comutação de suas penas. Depois de ler os dois livros, é difícil escapar ao lugar-comum de que de certa forma pagamos até hoje por esse começo negligente.

"A Viagem do Descobrimento - A Verdadeira História da Expedição de Cabral" e "Náufragos, Traficantes e Degredados - As Primeiras Expedições ao Brasil", Eduardo Bueno, Rio de Janeiro, Objetiva, 1998.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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