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Começando mal
OTAVIO FRIAS FILHO
Caminha não era o escrivão da frota.
A ração diária consistia de carne-seca,
biscoito e um litro e meio de água e de
vinho. No primeiro contato entre portugueses e tupiniquins, na praia, os
dois lados gritaram sem se ouvir por
causa do estrondo das ondas. Antes de
prosseguir para a Índia, Cabral costeou até Cabo Frio.
O maior interesse dos dois livros
que o jornalista Eduardo Bueno lançou sobre o descobrimento é trazer à
tona uma profusão de detalhes assim.
Não há "novidade" nesses trabalhos
de divulgação. O mérito é que o autor,
depois de aparentemente esgotar a bibliografia, converteu suas leituras em
narrativa viva, jornalística.
A caminho da Índia, em 1497, Vasco
da Gama se afastou da África, na altura do golfo da Guiné, numa manobra
criada pelos portugueses a fim de evitar as correntes contrárias da região.
Registrou a aparição de aves no meio
do oceano, indício de ilhas a oeste. Ao
que tudo indica, Cabral foi incumbido
de verificar sua existência.
A missão principal era instalar entrepostos comerciais na Índia, que
Cabral foi, de fato, o segundo a atingir
pela circunavegação da África. Eduardo Bueno conta que dezenas, talvez
centenas de cartas seguiram para Portugal, junto com a de Caminha, no
barco destacado para informar sobre
a descoberta de uma "ilha" atlântica.
Somente três desses documentos sobreviveram, porém, aos incêndios que
devastaram Lisboa em 1580 e 1755, este último em consequência do célebre
terremoto que indignou Voltaire. A
carta de Caminha ficou famosa porque ele era, como ressalta Bueno, um
ótimo repórter. Graças a ele o episódio foi bem documentado.
Caminha chega a observar, por
exemplo, que os dois índios que dormiram a bordo não eram circuncidados -detalhe significativo para os
viajantes ao sugerir que não havia influência de seus tradicionais inimigos,
os muçulmanos, no local. Obcecados
com a Índia, porém, os portugueses
não deram importância ao achado.
Enviaram mais duas frotas, em 1501
e 1503, que margearam o litoral brasileiro em busca de bens comerciáveis.
O resultado é descrito por Américo
Vespúcio, um dos chefes das expedições: "Nessa costa, não vimos coisa
de proveito, exceto uma infinidade de
árvores de pau-brasil". O Brasil foi
esquecido por cerca de 30 anos.
Foram nossas primeiras "décadas
perdidas", no dizer do autor. Foi só
quando um punhado de espanhóis
conquistou o Peru e as riquezas minerais dos incas que surgiu o interesse
de atingir a região subindo o rio da
Prata, assim batizado nessa expectativa, ou cortando o interior do Brasil.
Esforços que se frustraram também.
Nesse lapso, a "Terra dos Papagaios" -nosso primeiro nome- foi
visitada por traficantes de índios e degredados, deixados aqui a fim de colher informações para a Coroa, em
troca da comutação de suas penas.
Depois de ler os dois livros, é difícil
escapar ao lugar-comum de que de
certa forma pagamos até hoje por esse
começo negligente.
"A Viagem do Descobrimento - A Verdadeira
História da Expedição de Cabral" e "Náufragos,
Traficantes e Degredados - As Primeiras
Expedições ao Brasil", Eduardo Bueno, Rio de
Janeiro, Objetiva, 1998.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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