São Paulo, terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Cascas de laranja

RIO DE JANEIRO - Sempre ouvi dizer que não se deve brincar com a fome. Nem com a própria nem com a dos outros. Por isso mesmo, bem antes dos atuais escândalos que envolveram o governo e o PT logo no início do mandato de Lula, acredito que fui dos primeiros e mais constantes críticos do Fome Zero, que considerei demagógico, assistencialista e inútil.
Combater a fome é função do governo em particular e da sociedade em geral, mas não da forma como Lula e seus conselheiros tentaram fazer. É necessária uma estrutura econômica que envolva reforma agrária, transporte, conservação e distribuição, pleno mercado de trabalho e, conseqüentemente, salários. Fora disso, o que sobra é a caridade, no nível particular, e a demagogia, no plano governamental.
A propósito da fome, lembro uma historinha que ouvi no seminário. Um anacoreta fixou-se na margem de um rio e só se alimentava de laranjas, que eram abundantes nas margens. Um dia, ficou desesperado. Passara 20 anos chupando laranjas, queria mudar suas refeições, que julgava monótonas e insuficientes, rebelou-se contra Deus, que o levara àquele sacrifício.
Pegou o bordão de peregrino e decidiu ir embora, descendo o rio em busca de uma cidade onde houvesse um convento que lhe garantiria pelo menos o pão de cada dia.
Pouco mais adiante, na margem do mesmo rio, encontrou outro anacoreta que ali vivia e que estava alucinado, morrendo de fome. Ele se alimentava com as cascas de laranja que o outro jogava no rio e, mais adiante, eram recolhidas e o alimentavam. Há cinco dias não descia nenhuma casca de laranja, a fome apertava e ele não entendia como Deus podia ter feito aquilo com ele.
A historinha tem uma porção de sentidos, um deles pode-se aplicar ao Fome Zero do Lula. Jogar fora casca de laranjas pode alimentar um anacoreta. Mas um povo inteiro não pode matar sua fome esperando que o rio traga comida de graça.


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