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CARLOS HEITOR CONY
Cascas de laranja
RIO DE JANEIRO - Sempre ouvi dizer que não se deve brincar com a fome.
Nem com a própria nem com a dos
outros. Por isso mesmo, bem antes
dos atuais escândalos que envolveram o governo e o PT logo no início
do mandato de Lula, acredito que fui
dos primeiros e mais constantes críticos do Fome Zero, que considerei demagógico, assistencialista e inútil.
Combater a fome é função do governo em particular e da sociedade
em geral, mas não da forma como
Lula e seus conselheiros tentaram fazer. É necessária uma estrutura econômica que envolva reforma agrária,
transporte, conservação e distribuição, pleno mercado de trabalho e,
conseqüentemente, salários. Fora
disso, o que sobra é a caridade, no nível particular, e a demagogia, no plano governamental.
A propósito da fome, lembro uma
historinha que ouvi no seminário.
Um anacoreta fixou-se na margem
de um rio e só se alimentava de laranjas, que eram abundantes nas
margens. Um dia, ficou desesperado.
Passara 20 anos chupando laranjas,
queria mudar suas refeições, que julgava monótonas e insuficientes, rebelou-se contra Deus, que o levara
àquele sacrifício.
Pegou o bordão de peregrino e decidiu ir embora, descendo o rio em busca de uma cidade onde houvesse um
convento que lhe garantiria pelo menos o pão de cada dia.
Pouco mais adiante, na margem do
mesmo rio, encontrou outro anacoreta que ali vivia e que estava alucinado, morrendo de fome. Ele se alimentava com as cascas de laranja que o
outro jogava no rio e, mais adiante,
eram recolhidas e o alimentavam.
Há cinco dias não descia nenhuma
casca de laranja, a fome apertava e
ele não entendia como Deus podia
ter feito aquilo com ele.
A historinha tem uma porção de
sentidos, um deles pode-se aplicar ao
Fome Zero do Lula. Jogar fora casca
de laranjas pode alimentar um anacoreta. Mas um povo inteiro não pode matar sua fome esperando que o
rio traga comida de graça.
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