São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O pequeno Napoleão e sua corte

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Focalizei, em "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Unesp editora), o enlace entre favor, dinheiro e violência na vida brasileira, antigo vezo hoje subsistente sob tintas frescas, na troca de verbas, prestígio, votos, influências ou metal sonante entre parlamentares, membros do Executivo, o seu séquito e parentela. Rondando os velhos métodos, o crime organizado permeia os negócios públicos e gera dúvidas sobre o assassinato de políticos. Os governantes atuais refinam antigas formas de interpretar a prevaricação.
Um processo-crime, citado em "Homens Livres", indigita um fiscal por verter em jogatina as taxas recebidas. O réu inocentava-se de culpa: não reconhecia dolo, pois, perdendo, repunha a quantia subtraída; ganhando, retinha o lucro sem lesar os cofres públicos. Hoje loteria e bingo são fonte de peculato e os implicados também se absolvem, mas um contraste os afasta do antigo servidor: este acatou "a honrada promotoria", e os novos ameaçam a Justiça e o Ministério Público.


Enquanto favor, influência e dinheiro são negociados em nome da "governabilidade", alastra-se o desgoverno


Enquanto favor, influência e dinheiro são negociados em nome da "governabilidade", alastra-se o desgoverno: recessão, desemprego, arrocho de rendimentos, derrama de impostos, negligência de moradia, educação, saúde e alimento. Nessa trama, o aparato burocrático, repressivo e econômico da República serve a grupos que visam manobrar o Leviatã em benefício próprio.
Os recursos públicos são doados a favoritos ou convertem-se em moeda na compra de vantagens políticas e econômicas. Tal circuito mostra-se absurdo: o patrimônio público, fixado no curso do tempo, não se repõe com o dispêndio, tendendo a se esgotar enquanto meio de troca para adquirir poder ou convertê-lo em riqueza particular. Assim, quem subtraiu e alienou rápida e vorazmente a cornucópia estatal deu-se bem; quem chegou depois voltou-se para uma fonte renovável e passível de ser intensificada até a escravidão: trabalho e riqueza coletivos.
Nesse ato, ganha sentido o privilégio do capital financeiro acoplado ao confisco da produção e poupança para "honrar" dívidas, isto é, transferir largas fatias do PIB a investidores que não obtêm igual leniência em seus países. A autoridade pública garante tais especuladores e neles se apóia. É sabido que não só o valor do trabalho, mas a própria operosidade e parcimônia do trabalhador projeta-se na acumulação do capital, contribuindo para resolver seus impasses e atenuar o peso do cidadão sobre o Estado, o qual, neste país, engole tributos sem retornos. Esse ardil, inerente à "normalidade" capitalista, entre nós efetiva-se no atacado. O superávit fiscal é sua epítome e a "reforma" da Previdência, travestida de "modernização", é um abuso de força na troca entre poder e lucro.
Nessa "reforma", o funcionário público foi servido como donativo aos bancos sôfregos pelas miríades de contribuições, tornadas imperativas graças aos parcos vencimentos oficiais (retribuindo-se assim, quiçá, contas e promessas de campanha), e como brinde nas "negociações" por votos, cargos e verbas. É da natureza tirânica bajular os fortes e abater os fracos, gestos acolitados por líderes venais. Mais prepotência virá na reforma trabalhista, na qual direitos seculares serão "flexibilizados".
O escândalo do bingo segue a mesma lógica: acaparar dinheiro e riqueza lesando quem produz. O alvoroço por ele suscitado provém de seus beneficiários operarem com vícios e crimes, feito explicável por estar fora de seu alcance, antes de chegarem ao poder, a expropriação legalmente sancionada. Diz-se que o PT traiu e também se aventa, como Francisco de Oliveira, que sua liderança gestou uma nova classe -assertivas que não atingem o núcleo dessa aparente inversão política.
Note-se que os quadros do PT (inclusive intelectuais, dirigentes e parlamentares) não ultrapassam, em regra, o marco socioeconômico da classe média. Lembre-se também que os limites entre trabalho e capital não se alteram quando mantido o modelo de classes correlato ao sistema econômico. Neles, o trabalhador entretém um nível de subsistência multifário: baixo, como aqui e agora; mais alto, quando a renda se distribui civilizadamente. Vencer essa condição implica conseguir, de modo alheio ao trabalho ou parcimônia, transformar ganhos em dinheiro apto a ser acumulado e acrescido. Se tiver êxito, o "trabalhador" altera seu status, ascende na escala social. Nesse movimento não há mudança estrutural ou surge uma nova classe: apenas grupos de estratos inferiores escalam os elevados, absorvem seus estilos de vida e seus fins -tornam-se mais César que César. Os críticos da ordem vigente metamorfoseiam-se em seus paladinos e aplacam o juízo do "mercado": de jacobinos, tornam-se termidorianos; de vilões, "honoratiores". Não é de graça que nossas autoridades obsequiam o circuito financeiro mais do que pede o FMI.
Os atores dessa escalada não traíram, antes efetivaram, sua "causa": aparelhar o Estado e fruir suas benesses. Burocratas sindicalistas enxameiam nos ministérios e firmas estatais, alcançando centros de decisão inacessíveis ao trabalhador. Waldomiro Diniz tem essa origem e aprendeu bem os meandros do ofício.
Houve traição não contra os donos do PT, mas contra as bases que os sustentaram, vendidas no leilão da República, e também contra os dissidentes, reprimidos e expulsos. No centro desse cenário de lisonja, grosseira arrogância, corrupção burocrática, sectarismo, delírios de idéias fixas e metáforas simplórias, brilha, com picardia, o nosso pequeno Napoleão.

Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Departamento de Filosofia da USP.


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