São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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Para prevenir o erro médico



O mercado, em geral, remunera tão mal os médicos que eles tendem a trabalhar exageradamente
RAUL CUTAIT

A revista "Veja" abordou recentemente a questão do erro médico. Assunto complexo, deve ser analisado amplamente, inclusive pelo lado do médico, um profissional que vem tendo seus ideais massacrados pelo asfixiante mercado de trabalho. Erro é algo inerente a todas as atividades humanas e ocorre em todas as profissões, das mais simples às que interferem nos destinos do país. Na área médica, contudo, pelas suas implicações, gera comoção. É importante entender que esse tipo de erro pode decorrer de diversos fatores, ligados ao próprio médico ou ao sistema, que serão aqui comentados.
1) O médico. Para exercer sua profissão, ele precisa ser, antes de mais nada, competente. No nosso meio, afora o desinteresse de aprender, real para parte dos estudantes, há uma séria limitação: o ensino precário, oferecido por faculdades pouco comprometidas com a qualificação dos alunos. O aprimoramento pós-graduado, em nível de residência médica, é restringido pelo número insuficiente de vagas no país. Para completar, o mercado, em geral, remunera tão mal os médicos que eles tendem a trabalhar exageradamente, sobrando-lhes pouco tempo e dinheiro para investir em educação continuada.
Por outro lado, a incompetência pode ser fruto da inexperiência. Mas não é sempre que o médico pode encaminhar casos a colegas ou centros mais capacitados. Isso ocorre nas urgências, o que é compreensível, mas também no SUS, por falta de vagas especializadas, e no setor privado, por restrições das fontes pagadoras! Essas situações criam para o médico dilemas técnicos e éticos.
Uma situação peculiar é a tomada de decisões em casos mais difíceis. Mesmo o profissional competente e dedicado pode optar por caminhos que, avaliados de modo retrospectivo, mostram não ser os melhores. Mais: a evolução dos conhecimentos científicos, não raro, desatualiza condutas rotineiras.
Um último aspecto diz respeito ao comportamento profissional do médico. Displicência, negligência, imprudência, interesses escusos e atitudes definidas por falta de humildade são sempre inadmissíveis para quem se propõe a cuidar de seus semelhantes.
2) As condições de trabalho. A grande maioria dos médicos trabalha em condições longe das ideais. No setor público, há dificuldades para obter exames, falta de equipamentos, limitações ao encaminhamento de pacientes para centros mais especializados. No setor privado, o médico comumente é obrigado a aceitar limitações à sua prática, impostas pelas fontes pagadoras.
3) "Erro médico" como negócio. Nas últimas décadas, criou-se a "indústria do erro", excelente negócio tanto para seguradoras quanto para advogados que tenham como preocupação primordial seus próprios lucros. Graças a essa nova ótica, a relação médico-paciente, que deve ser calcada em confiança e competência, tem sido abalada, estimulando a chamada medicina defensiva, que eleva de maneira descomunal os custos da atenção médica.
Sem dúvida, o cidadão deve ser protegido; para isso, maus profissionais devem ser identificados. Mas as ações contra os médicos e seus julgamentos devem ser encaminhados dentro de critérios que abranjam todas as variáveis.
É melhor prevenir que remediar. Assim, são fundamentais algumas medidas de longo alcance: a) fechamento, pelo governo, de faculdades de medicina que não mostrem competência para formar profissionais dentro dos padrões desejáveis; b) as entidades médicas devem credenciar só os programas de residência médica que ofereçam condições adequadas de treinamento; c) os médicos, para manter suas licenças, deveriam participar de programas de educação continuada obrigatórios, sendo necessário, para isso, que percebam salários e honorários mais dignos e compatíveis com suas atribuições; d) introduzir na prática clínica o conceito de padronização de condutas, com o uso de protocolos de atendimento, observando os atuais conceitos da chamada medicina baseada em evidências. O resultado final? Melhor qualidade de atendimento, com menores custos.
Erros médicos existem, mas devem ser entendidos dentro de um panorama mais amplo, no qual a sociedade que pretenda punir os maus profissionais reconheça as dificuldades para o correto exercício da medicina e interfira para saná-las. Erros devem ser, mais que coibidos, prevenidos. Para tanto, é preciso que o país invista na qualidade do ensino médico e na criação de melhores condições de trabalho na saúde.
Raul Cutait, 49, cirurgião gastrenterologista, é professor-associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP, presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde e diretor-geral do Centro de Oncologia do Hospital Sírio Libanês. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (gestão Paulo Maluf).


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