São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2000


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Para lembrar


Familiares de vítimas de tortura e assassinato não estarão celebrando os 500 anos do Brasil


PIERRE SANÉ

A vela que simboliza a Anistia Internacional tem estado acesa por apenas 40 dos 500 anos do Brasil. Porém sua chama contém a memória coletiva de mais de 1 milhão de membros em todo o mundo que estarão relembrando nesse aniversário as centenas de brasileiros pelos quais fizeram campanha nestes anos.
O Brasil hoje é muito diferente daquele que descrevemos em nossos primeiros relatórios anuais, no início dos anos 70. Naquela época o Parlamento fora dissolvido, a censura era rigorosa, centenas de supostos "subversivos" eram vítimas de tortura e "desaparecimento", protestos de ativistas de direitos humanos passavam despercebidos.
Agora, relatamos com regularidade uma série de iniciativas positivas: o Programa Nacional de Direitos Humanos estabelece uma pauta importante; as autoridades têm cooperado com a sociedade civil em projetos que abrangem desde a proteção de testemunhas até a profissionalização de policiais e guardas de presídios; a polícia submete-se ao escrutínio de ouvidorias em vários Estados; existem propostas para solucionar a crise de desumanidade reinante no sistema prisional.
A concretização desses avanços deveu-se exclusivamente à tenacidade de indivíduos que tiveram a coragem de defender a dignidade humana, percorrendo o caminho desbravado por aqueles que lutaram contra a extinção das comunidades indígenas, que batalharam para pôr fim à escravidão e que protestaram contra a tortura e o assassínio sob o regime militar. São essas pessoas que proporcionam ao Brasil motivos para celebrar o dia de amanhã.
Talvez seja óbvio afirmar que ainda existe um longo caminho a percorrer. Mas vale repetir, uma vez que continuamos recebendo diariamente denúncias de assassínios e tortura -herança terrível de uma história de impunidade no Brasil. Somente nos últimos meses perdemos mais um defensor dos direitos humanos, João Elísio Pessoa, morto a tiros diante da mulher por ter denunciado um grupo de extermínio policial que se acredita seja responsável pela morte de uma centena de pessoas.
Assistimos também à morte de João Ferreira da Silva nas mãos de policiais militares durante uma manifestação pacífica em Brasília. Continuamos a observar o fracasso das autoridades em proporcionar uma força policial profissional, treinada e equipada para prevenir e investigar o crime, bem como proteger a sociedade.
Os familiares dos milhares de vítimas de assassinato e tortura policial não estarão celebrando os 500 anos do Brasil. Eles são, em sua maioria, os pobres e ignorados, já sem esperança de que a justiça seja feita. A impunidade permanece firmemente estabelecida e ainda não existe um sistema efetivo de investigação independente dos abusos cometidos por policiais.
Mesmo em alguns dos casos de maior destaque, que provocaram indignação no país e no exterior -Carandiru, Corumbiara e Eldorado do Carajás-, os responsáveis ainda não foram levados a julgamento. Em outros casos, tais como as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, mesmo com a condenação de policiais em julgamentos-espetáculo, nenhuma vítima recebeu nem sequer um real de compensação.
Talvez os que menos tenham razões para celebrar a data de amanhã sejam os povos indígenas do Brasil, vítimas de violência, repressão e privações desde que os portugueses desembarcaram em suas praias.
Estranhamente, as autoridades têm falhado em proteger o seu direito à vida e à dignidade, na prestação de cuidados adequados para lhes permitir enfrentar as epidemias que os têm dizimado e em defendê-los dos povos não-indígenas que cobiçam suas terras. Ainda no mês passado, em Roraima, índios e missionários que os apoiavam foram alvo de ameaças e intimidações. Em janeiro, índios do povo guarani-nhandeva foram espancados durante uma tentativa ilegal de expulsão ocorrida no Mato Grosso do Sul. Os perpetradores de tais atos sempre escapam à Justiça.
Essas são apenas algumas das razões pelas quais os membros da Anistia Internacional do mundo inteiro, de todas as culturas e camadas sociais, estarão amanhã pensando no Brasil.
Lembrarão os "desaparecidos", as incontáveis vítimas da tortura e os que morreram nas chacinas. Lembrarão os defensores que deram sua vida pelos direitos dos outros. Lembrarão junto com os pais que perderam seus filhos, com homens e mulheres que perderam seus esposos, com os amigos que perderam amigos. Eles lembram quando todos os demais já esqueceram. Lembram a fim de responsabilizar matadores e torturadores. Mas, acima de tudo, para aprender as lições do passado e avançar rumo a um futuro em que a dignidade humana seja primordial.


Pierre Sané, 51, economista senegalês, doutor em ciência política pela Universidade de Ottawa (Canadá), é secretário-geral da Anistia Internacional.



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