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TENDÊNCIAS/DEBATES
"Deve haver plebiscito para decidir a legalização do aborto no Brasil?"
SIM
Por uma discussão informada
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI
NINGUÉM em sã consciência é
a favor do aborto, muito menos eu. Ser a favor da descriminalização do aborto não é ser a favor do aborto. Aliás, a descriminalização do aborto é um caminho para
controlá-lo, diminuir sua incidência e
também as mortes por ele causadas
quando provocado em condições inadequadas que fizeram da mortalidade
materna em adolescentes, no Brasil,
uma das maiores do mundo.
Se existe algum criminoso responsável por um aborto, seguramente
não é a mulher que o pratica.
Em 50 anos de vida profissional
não conheci sequer uma mulher que
engravidou pelo prazer de abortar,
mas posso apontar uma série de políticas distorcidas, de equívocos e displicências do poder público que levam criminosamente à tragédia do
aborto provocado e outras conseqüências dramáticas da gravidez indesejada. A falta de educação reprodutiva nas escolas, a deseducação
causada pela televisão e a não disponibilização de metodologias anticoncepcionais eficientes nos postos de
saúde são algumas delas.
Todos esses desmandos são jogados para debaixo do tapete e se criminaliza, com falso moralismo, as mulheres que, em ato de desespero, o
praticam. Por isso concordo plenamente com a realização do plebiscito.
Onde estão a responsabilidade pública, a solidariedade, a justiça e a própria ética? Tiveram seu espaço ocupado pela hipocrisia e pelo descaso.
Procura-se ignorar, também, mais
de um milhão de abortos provocados
ilegalmente a cada ano, responsáveis
por um quarto da mortalidade materna brasileira e por agravos na saúde física e emocional das mulheres.
Nessa questão, como em todas as
demais, se estabelece uma evidente
linha divisória entre pobres e ricos.
Esses últimos usam métodos seguros,
como comprimidos abortivos, e, a seguir, hospitais com todo conforto e
segurança para terminar o processo
de interrupção da gravidez.
Os usuários do sistema público são
submetidos a métodos inseguros, freqüentemente contaminados e dolorosos, pagando, às vezes, com a vida.
Coloque-se aí, também, a questão absurda de uma lei tão arcaica e restritiva que não permite, por exemplo, a
ampliação da legalidade do aborto para casos de malformações incompatíveis com a vida, como é a anencefalia.
Em termos de saúde pública, seria
bom verificar o que aconteceu nos
países que descriminalizaram e regulamentaram o aborto, como a Romênia: aumentou inicialmente o número, mas, imediatamente, diminuiu
sensivelmente a mortalidade. A seguir, a quantidade caiu e ficou abaixo
das registradas no tempo da ilegalidade e a mortalidade continuou caindo.
Houve, novamente, a proibição, e a situação se reverteu.
Uma discussão informada e ética
sobre a descriminalização do aborto é
necessária, pois trará para o debate as
precárias condições do atendimento
à saúde das mulheres. Os maiores
promotores do aborto são os que desejam que tudo fique como está.
Portanto, festejo e apóio a coragem
do ministro da Saúde, José Gomes
Temporão, de tirar esse tabu do armário e colocá-lo em discussão preparatória de um plebiscito, pois ela
não se restringirá às questões fundamentalistas, mas trará a público as
causas (evitáveis) do aborto e seus
verdadeiros responsáveis.
Chegar-se-á a uma conclusão: esse
projeto deve ser acompanhado (o certo seria que fosse precedido) de ampla
reformulação na atenção primária
para que as mulheres possam encontrar, nos centros de saúde, fácil acesso
e bom acolhimento, atendimento ginecológico integral que ofereça a cada
uma o melhor método anticoncepcional, inclusive esterilização masculina
e feminina, procedimentos legalizados desde 1995, mas não realizados
pelos hospitais públicos.
Se a proposta de descriminalização
não vier acompanhada dessas medidas, se estará fazendo do aborto um
método de planejamento familiar ou,
o que é pior, de controle da natalidade
e, nessas condições, não faz sentido
sequer termos um plebiscito.
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI, 72, deputado federal (Democratas-SP), é secretário de ensino superior do Estado, professor emérito da USP e da Unicamp e presidente do
Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário
da Educação do município de São Paulo, secretário da Educação e da Saúde do Estado de São Paulo, presidente da
Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia e
reitor da Unicamp.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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