São Paulo, sábado, 21 de abril de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

"Deve haver plebiscito para decidir a legalização do aborto no Brasil?"

SIM

Por uma discussão informada

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

NINGUÉM em sã consciência é a favor do aborto, muito menos eu. Ser a favor da descriminalização do aborto não é ser a favor do aborto. Aliás, a descriminalização do aborto é um caminho para controlá-lo, diminuir sua incidência e também as mortes por ele causadas quando provocado em condições inadequadas que fizeram da mortalidade materna em adolescentes, no Brasil, uma das maiores do mundo.
Se existe algum criminoso responsável por um aborto, seguramente não é a mulher que o pratica. Em 50 anos de vida profissional não conheci sequer uma mulher que engravidou pelo prazer de abortar, mas posso apontar uma série de políticas distorcidas, de equívocos e displicências do poder público que levam criminosamente à tragédia do aborto provocado e outras conseqüências dramáticas da gravidez indesejada. A falta de educação reprodutiva nas escolas, a deseducação causada pela televisão e a não disponibilização de metodologias anticoncepcionais eficientes nos postos de saúde são algumas delas.
Todos esses desmandos são jogados para debaixo do tapete e se criminaliza, com falso moralismo, as mulheres que, em ato de desespero, o praticam. Por isso concordo plenamente com a realização do plebiscito. Onde estão a responsabilidade pública, a solidariedade, a justiça e a própria ética? Tiveram seu espaço ocupado pela hipocrisia e pelo descaso.
Procura-se ignorar, também, mais de um milhão de abortos provocados ilegalmente a cada ano, responsáveis por um quarto da mortalidade materna brasileira e por agravos na saúde física e emocional das mulheres.
Nessa questão, como em todas as demais, se estabelece uma evidente linha divisória entre pobres e ricos.
Esses últimos usam métodos seguros, como comprimidos abortivos, e, a seguir, hospitais com todo conforto e segurança para terminar o processo de interrupção da gravidez.
Os usuários do sistema público são submetidos a métodos inseguros, freqüentemente contaminados e dolorosos, pagando, às vezes, com a vida.
Coloque-se aí, também, a questão absurda de uma lei tão arcaica e restritiva que não permite, por exemplo, a ampliação da legalidade do aborto para casos de malformações incompatíveis com a vida, como é a anencefalia.
Em termos de saúde pública, seria bom verificar o que aconteceu nos países que descriminalizaram e regulamentaram o aborto, como a Romênia: aumentou inicialmente o número, mas, imediatamente, diminuiu sensivelmente a mortalidade. A seguir, a quantidade caiu e ficou abaixo das registradas no tempo da ilegalidade e a mortalidade continuou caindo. Houve, novamente, a proibição, e a situação se reverteu.
Uma discussão informada e ética sobre a descriminalização do aborto é necessária, pois trará para o debate as precárias condições do atendimento à saúde das mulheres. Os maiores promotores do aborto são os que desejam que tudo fique como está.
Portanto, festejo e apóio a coragem do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, de tirar esse tabu do armário e colocá-lo em discussão preparatória de um plebiscito, pois ela não se restringirá às questões fundamentalistas, mas trará a público as causas (evitáveis) do aborto e seus verdadeiros responsáveis.
Chegar-se-á a uma conclusão: esse projeto deve ser acompanhado (o certo seria que fosse precedido) de ampla reformulação na atenção primária para que as mulheres possam encontrar, nos centros de saúde, fácil acesso e bom acolhimento, atendimento ginecológico integral que ofereça a cada uma o melhor método anticoncepcional, inclusive esterilização masculina e feminina, procedimentos legalizados desde 1995, mas não realizados pelos hospitais públicos.
Se a proposta de descriminalização não vier acompanhada dessas medidas, se estará fazendo do aborto um método de planejamento familiar ou, o que é pior, de controle da natalidade e, nessas condições, não faz sentido sequer termos um plebiscito.


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI, 72, deputado federal (Democratas-SP), é secretário de ensino superior do Estado, professor emérito da USP e da Unicamp e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos. Foi secretário da Educação do município de São Paulo, secretário da Educação e da Saúde do Estado de São Paulo, presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia e reitor da Unicamp.

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