São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Trabalho decente? Só redistribuindo renda

ODED GRAJEW

O Brasil caiu numa armadilha e dela não está conseguindo sair. Durante décadas o país caiu no conto do dinheiro fácil e se endividou. Hoje o endividamento de União, Estados, municípios e estatais soma R$ 926,4 bilhões, o que equivale a 56,6% do PIB, e o governo brasileiro paga de juros um terço do que arrecada.
O maior desafio dos nossos tempos é gerar trabalho decente para as pessoas. Os países europeus se puseram de acordo a não ultrapassar os 3% de déficit público para constituir o mercado e a moeda únicos. Vários desses países estão ultrapassando esse limite, chegando a 4% de déficit, porque dizem que com apenas 3% de déficit eles não conseguem gerar os empregos necessários. Pela mesma razão, os EUA estão hoje com 4,75% de déficit público.
O Brasil é obrigado a gerar 4,25% de superávit para atender seus compromissos de pagamento de juros. Tenho feito uma pergunta a muitas pessoas (economistas, políticos, empresários, dirigentes sociais e sindicais, presidentes de organismos internacionais), sem obter nenhuma resposta, e faço essa pergunta aos leitores: se a Europa e os EUA, que arrecadam o mesmo tanto ou mais impostos do que o Brasil, não conseguem impulsionar a economia a ponto de gerar trabalho com 3% a 4 % de déficit, como o Brasil conseguirá fazê-lo com 4,25% de superávit? Nenhuma pessoa, organização ou empresa tem condições de se desenvolver comprometendo um terço de sua renda ou faturamento para pagar juros. Ano após ano, eleição após eleição, governo após governo, continuamos a nos enganar.
Temos uma saída? Estou convencido de que sim. O governo Lula, acertadamente, firmou um compromisso público com o cumprimento dos contratos e tenta, dentro das estreitas regras do jogo, negociar da melhor forma possível. Pelo grau de vulnerabilidade que atingimos, creio que um rompimento unilateral dos contratos seria desastroso para o país. A saída, do meu ponto de vista, é, além de tentar negociar melhores acordos, promover uma gigantesca redistribuição de renda.
Temos no Brasil (governo e sociedade) imensos recursos financeiros, econômicos, tecnológicos, alimentares, humanos, patrimoniais e culturais, suficientes para atender decentemente toda a nossa população. Estudo do Centro de Políticas Sociais da FGV aponta que, para erradicar a indigência que atinge 56 milhões de pessoas, seria necessária a aplicação de R$ 1,69 bilhão por mês (2% do PIB), o que significaria uma contribuição mensal de R$ 14 por brasileiro vivendo acima da linha da pobreza.


Se Europa e EUA não geram trabalho com 3% a 4 % de déficit, como o Brasil conseguirá com 4,25% de superávit?
Se as empresas dessem oportunidades a jovens de baixa renda, todos escapariam de ser mão-de-obra barata do crime organizado. Governo e sociedade precisam tomar a decisão política de transferir recursos (insisto na palavra transferir), nos orçamentos públicos e na sociedade, para a população mais pobre. Inúmeras medidas poderiam ser colocadas em prática -como uma radical mudança no sistema tributário, isentando ao máximo os pobres de taxas e impostos diretos e indiretos e fazendo recair a taxação sobre rendas, transações de maior valor e patrimônios da população mais rica.
A sociedade, especialmente pessoas, organizações e empresas com maiores recursos -financeiros, econômicos, tecnológicos, humanos, educacionais e culturais- deveriam intensificar dramaticamente seus investimentos sociais voluntários e direcioná-los exclusivamente aos mais necessitados. Dinheiro e educação para os mais pobres fariam nosso mercado consumidor passar de 30 milhões de pessoas para 60, 80 ou 100 milhões. O incremento do mercado geraria mais empregos, o que aumentariam ainda mais o mercado. O aumento do mercado atrairia mais investimentos. Mais impostos seriam arrecadados, aumentando a capacidade do governo de investir, promover a justiça social e começar a abater a dívida. Com o aumento do PIB cai o peso da dívida, diminui a vulnerabilidade e o risco do país, expande-se a possibilidade de caírem os juros e crescer a economia.
Redistribuir a renda, colocando dinheiro nas mãos das pessoas mais pobres, fará aumentar o mercado interno e o consumo, o que gerará empregos e trabalho.
Só a redistribuição de renda fará o país crescer e gerar trabalho. Foi essa decisão que há muitos anos tomaram os países escandinavos, por visão e sabedoria de suas elites -hoje eles são os campeões mundiais do desempenho econômico e do desenvolvimento humano. Tenho certeza de que o sacrifício, temporal e suportável, da população mais rica será amplamente recompensado pelo desenvolvimento econômico e pelo extraordinário aumento da qualidade de vida.
Espero que nossas lideranças governamentais, empresariais e sociais, a sociedade em geral, tomem consciência da gravidade da situação, desse faz-de-conta que vivemos, e tracem um novo rumo para o nosso pobre e ao mesmo tempo tão rico e promissor Brasil.


Oded Grajew, 60, empresário, idealizador do Fórum Social Mundial, é diretor-presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Foi assessor especial do presidente da República (2003).


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