São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Patrimônio ameaçado

LUÍS RAUL WEBER ABRAMO, JOÃO C. A. BARATA e CARLA GOLDMAN

Um dos componentes centrais de qualquer instituição de ensino e pesquisa é a facilidade de acesso a informações que a mesma propicia. Mesmo em áreas novas de pesquisa, é comum recorrer a resultados e publicações de anos ou décadas atrás, pois a informação científica não é descartável e é da natureza da atividade científica ancorar seu progresso em trabalho anterior.
Uma grande amplitude de acesso à informação é essencial às atividades de pesquisa e ensino. Assim, uma biblioteca universitária deve garantir a facilidade de consulta a publicações, recentes ou não, o que só é possível com uma política decidida e permanente de aquisição e manutenção.
O advento de versões eletrônicas, para consulta on-line, de publicações periódicas, embora deva ser saudado como importante passo para acelerar a divulgação de informações científicas, tem tido conseqüências bastante preocupantes e exigido atenção dos formuladores de políticas para bibliotecas científicas de todo o mundo, em particular das universidades públicas paulistas, como a USP. Tal forma de divulgação não pode, pelas razões que apontaremos, ser encarada como substituta das tradicionais publicações em papel.
Em primeiro lugar, há a questão da propriedade do material adquirido. Ao se abdicar de uma assinatura em papel pelo conteúdo eletrônico de uma publicação, abre-se mão da sua posse futura, dado que o acesso, mesmo a publicações passadas, geralmente só será garantido mediante pagamento continuado, como num contrato de aluguel em moeda estrangeira. É duvidoso que em um ambiente de incertezas econômicas esse risco possa ser compensado por eventuais vantagens financeiras momentâneas.
Em segundo lugar, nada garante que os formatos eletrônicos preferidos pelas diversas editoras serão continuados nas próximas décadas. Dada a velocidade das transformações da tecnologia da informação, é temerário adotar políticas firmadas em solo tão instável. Ademais, custos de adequações de formato são tipicamente repassados ao usuário final.
Em terceiro lugar, há a questão da garantia de acesso público às revistas eletrônicas. Bibliotecas como as da USP são públicas e, portanto, não deveriam restringir a consulta ao conhecimento que guardam. Ao adotar um sistema no qual a consulta a publicações periódicas só pode ser feita a partir de certos computadores cadastrados, essa universalidade de acesso é ferida. O resultado dessa política acarreta, portanto, a troca de um bem público por um serviço para poucos.


Nada garante que os formatos eletrônicos preferidos pelas editoras serão continuados nas próximas décadas
Finalmente, há o perigo de subtração, por parte das editoras, de informações on-line que venham a se tornar de interesse estratégico e/ou comercial, sem que as bibliotecas tenham controle. Analogamente, ao abrir mão, em benefício das editoras, de estatísticas de acesso aos periódicos, as bibliotecas e seus usuários perdem controle sobre informações cruciais para a elaboração de suas políticas de aquisição.
A despeito das graves questões acima, o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP (Sibi/USP), órgão central ligado à reitoria e responsável pelo gerenciamento de aquisições de todas as bibliotecas da universidade, vem tomando medidas que ferem o interesse dos seus pesquisadores, estudantes e da sociedade em geral. De maneira unilateral, apesar de protestos de vários docentes e sob alegação de duvidosas medidas de economia, o Sibi/USP decidiu eliminar duplicações de assinaturas de periódicos impressos que possuam versão eletrônica.
Essa atitude atinge duramente unidades separadas por centenas de quilômetros, como os institutos de Física da capital e de São Carlos. Em novembro de 2002, o Sibi/USP anunciou que manteria apenas uma assinatura em papel de cerca de 50 publicações com acesso eletrônico da área de física, outorgando a assinatura da versão impressa à unidade que dispusesse do maior acervo de cada publicação. A unidade "perdedora" passaria a dispor apenas de acesso às versões eletrônicas. Dentre os títulos cortados encontram-se algumas das mais importantes publicações científicas internacionais, tais como "Science" e "Nature".
Tais medidas são míopes, pelo empobrecimento imediato que causam às bibliotecas e por ignorarem os efeitos a curto e longo prazo, mencionados acima. Essas perdas podem se tornar irreversíveis, caso as medidas não sejam imediatamente revistas e as coleções recompostas.
Durante seus 70 anos de existência, a USP construiu algumas das melhores bibliotecas do país, patrimônio do Estado de São Paulo e nacional. A forma com que o Sibi/USP tem tratado essas questões, ignorando apelos bem fundamentados de pesquisadores da USP, não faz justiça à tradição da nossa universidade. A USP deve urgentemente rever a estrutura de funcionamento daquele órgão, tornando-o mais sensível ao interesse maior da universidade e da população a que deveria servir.


Luís Raul Weber Abramo, 35, doutor pela Universidade Brown (EUA), João C. A. Barata, 42, doutor pela Universidade Livre de Berlim (Alemanha) e Carla Goldman, 43, doutora pela USP, são professores do Instituto de Física da USP.


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