São Paulo, quinta, 21 de agosto de 1997.



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A vitória de Merquior

OTAVIO FRIAS FILHO

Nesta década Nelson Rodrigues foi canonizado, Paulo Francis e Roberto Campos foram consagrados, Arnaldo Jabor converteu-se em polemista, o escritor Olavo de Carvalho acaba de virar capa de revista, o poeta Bruno Tolentino deflagrou controvérsias violentíssimas. Os anos 90 são uma era de intenso revisionismo cultural.
É pena que José Guilherme Merquior não tenha vivido para presenciar a vitória, embora os que combatem sob sua insígnia continuem a lutar encarniçadamente, como se estivessem cercados num desfiladeiro sem se dar conta de que o adversário sumiu. Já é tempo de perguntar que vitória é essa e aonde ela conduz.
Os inimigos agora derrotados são os mesmos que Merquior havia identificado tão cedo: o marxismo, a psicanálise, o estruturalismo, qualquer sistema totalizante que pretenda subordinar o comportamento humano à suposta ação de forças impessoais, invisíveis e inconscientes. O "neo-revisionismo" gosta do particular.
Seu alvo é a mentalidade "progressista" -vagamente humanista e de esquerda- que se firmou nos meios cultos do Brasil na década de 50 a partir de vários centros, mas especialmente da Universidade de São Paulo. Formada por uma missão francesa, a USP refletiu a influência esquerdizante da intelectualidade parisiense no pós-guerra.
O "progressismo" rapidamente extrapolou do meio universitário para o ambiente artístico, para a imprensa e para a Igreja Católica, ou parte importante dela. Sempre estimulada pelo maniqueísmo da Guerra Fria, essa mentalidade ganhou força moral com as perseguições que sofreu durante o regime militar (1964-85).
Com a redemocratização, ela se mostrou "hegemônica" -para utilizar uma expressão tipicamente sua-, inspirou o Plano Cruzado, fez a Constituição de 88. De repente, porém, "o mundo mudou" e ela entrou em colapso, como tantas outras coisas mais. Os revisionistas se dedicam agora a espancar os seus destroços.
No começo as idéias "progressistas" eram equivocadas, falsas, demagógicas. Agora elas são imorais, monstruosas, patogênicas. Foi lançado com alarde internacional um "Manual do Perfeito Idiota Latino-americano", voltado ao público de esquerda. "O Imbecil Coletivo" é o nome do último livro de Olavo de Carvalho.
O autor inverte os valores implicados em todos os pontos de honra do ideário "progressista" -o banimento do preconceito de raça, a igualdade moral dos homossexuais-, submetendo-os a uma revisão brutal, às vezes vulgar, às vezes capciosa, quase sempre argumentada com clareza e precisão. O resultado é escandaloso.
A mentalidade "progressista" tem de enfrentar sua hora da verdade, é ótimo abalar certezas que estão caindo de podre. Falta aos "neo-revisionistas" esclarecer, porém, o que pretendem pôr no lugar além desse conformismo fragmentário e pós-utópico. O livre-mercado também é uma força inconsciente, impessoal e invisível.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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