São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2000


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BORIS FAUSTO

Heróis e memória

A aproximação entre Brasil e Argentina é muito desejável, não só no plano econômico como no da cultura, tomada essa expressão em sentido amplo.
Para chegar a um pleno entendimento, convém passar a limpo um passado de rivalidades e acabar com preconceitos. Tais preconceitos vêm sendo aparados nos círculos diplomáticos, mas têm um substrato profundo, que vai além das inapagáveis rivalidades futebolísticas, passando por piadas grosseiras, de parte a parte, assim como pelo racismo.
Uma das principais vias para chegar a esse objetivo consiste em conhecer-se melhor não só para marcar semelhanças, mas também para marcar diferenças. Nesse último caso, tomo como exemplo a maneira, a meu ver diversa, de cultuar ou apagar o passado, de mitificar ou ignorar figuras históricas no Brasil e na Argentina.
É corriqueira a observação de que o Brasil é um país sem memória, que esquece com facilidade seus vultos históricos. A mitificação desses vultos como instrumento da construção da nacionalidade, não por acaso, é também pobre. Nós, brasileiros, tendemos a ignorar ou a conferir um papel secundário aos heróis e a não nos preocupar muito com imagens positivas ou negativas de personagens centrais do passado. Tiradentes, pintado com as feições presumíveis de Cristo, representa uma das raras exceções; Getúlio Vargas talvez represente outra.
O imaginário argentino é diverso. O passado, para o bem ou para o mal, integra o presente; os heróis são cultuados e as controvérsias sobre figuras históricas são bem mais apaixonadas do que no Brasil. Por exemplo, uma visita ao Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, é um passeio pela história, pelos monumentos consagrados ao general-presidente Roca, ao general Aramburu (um dos líderes da chamada Revolução Libertadora, que derrubou Perón) e a tantos outros. No Brasil, há ossos ilustres enterrados no Cemitério de São João Batista, em Petrópolis, em São Borja e até em cemitérios semi-abandonados das "cidades mortas" do Vale do Paraíba, onde muitos barões e condes viveram nos anos de fastígio econômico da região.
Enquanto na Argentina ocorre uma verdadeira disputa em torno de personagens embalsamados e de seus ossos -o caso fantástico de Perón salta aos olhos-, no Brasil essas coisas não são levadas muito a sério. Quando os ossos de Pedro 1º retornaram ao país há algumas décadas, o fato só interessou, em sentido positivo, aos monarquistas e, em sentido negativo, aos patriotas pernambucanos, que execraram os restos mortais do algoz de Frei Caneca.
Na Argentina, o fervor das controvérsias em torno de figuras históricas com reflexos no presente associa-se aos defensores e inimigos de Rosas, desde meados do século 19, e aos peronistas e antiperonistas, em época mais recente. No Brasil, essas disputas não têm peso, ou vão perdendo peso. Se Getúlio é um herói civilizador para uns e um ditador liberticida para outros, quase ninguém mais se lembra dos idos de 37.
Dessas observações, não quero extrair nenhum juízo de valor. Contento-me em assinalar mais uma vez, e não me parece pouco, que reconhecer diferenças culturais é uma boa forma de promover uma desejável aproximação.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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