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BORIS FAUSTO
Heróis e memória
A aproximação entre Brasil e
Argentina é muito desejável, não
só no plano econômico como no da
cultura, tomada essa expressão em
sentido amplo.
Para chegar a um pleno entendimento, convém passar a limpo um
passado de rivalidades e acabar com
preconceitos. Tais preconceitos vêm
sendo aparados nos círculos diplomáticos, mas têm um substrato profundo, que vai além das inapagáveis rivalidades futebolísticas, passando por
piadas grosseiras, de parte a parte, assim como pelo racismo.
Uma das principais vias para chegar
a esse objetivo consiste em conhecer-se melhor não só para marcar semelhanças, mas também para marcar diferenças. Nesse último caso, tomo como exemplo a maneira, a meu ver diversa, de cultuar ou apagar o passado,
de mitificar ou ignorar figuras históricas no Brasil e na Argentina.
É corriqueira a observação de que o
Brasil é um país sem memória, que esquece com facilidade seus vultos históricos. A mitificação desses vultos como instrumento da construção da nacionalidade, não por acaso, é também
pobre. Nós, brasileiros, tendemos a ignorar ou a conferir um papel secundário aos heróis e a não nos preocupar
muito com imagens positivas ou negativas de personagens centrais do
passado. Tiradentes, pintado com as
feições presumíveis de Cristo, representa uma das raras exceções; Getúlio
Vargas talvez represente outra.
O imaginário argentino é diverso. O
passado, para o bem ou para o mal, integra o presente; os heróis são cultuados e as controvérsias sobre figuras
históricas são bem mais apaixonadas
do que no Brasil. Por exemplo, uma
visita ao Cemitério da Recoleta, em
Buenos Aires, é um passeio pela história, pelos monumentos consagrados
ao general-presidente Roca, ao general Aramburu (um dos líderes da chamada Revolução Libertadora, que
derrubou Perón) e a tantos outros. No
Brasil, há ossos ilustres enterrados no
Cemitério de São João Batista, em Petrópolis, em São Borja e até em cemitérios semi-abandonados das "cidades mortas" do Vale do Paraíba, onde
muitos barões e condes viveram nos
anos de fastígio econômico da região.
Enquanto na Argentina ocorre uma
verdadeira disputa em torno de personagens embalsamados e de seus ossos
-o caso fantástico de Perón salta aos
olhos-, no Brasil essas coisas não são
levadas muito a sério. Quando os ossos de Pedro 1º retornaram ao país há
algumas décadas, o fato só interessou,
em sentido positivo, aos monarquistas e, em sentido negativo, aos patriotas pernambucanos, que execraram os
restos mortais do algoz de Frei Caneca.
Na Argentina, o fervor das controvérsias em torno de figuras históricas
com reflexos no presente associa-se
aos defensores e inimigos de Rosas,
desde meados do século 19, e aos peronistas e antiperonistas, em época
mais recente. No Brasil, essas disputas
não têm peso, ou vão perdendo peso.
Se Getúlio é um herói civilizador para
uns e um ditador liberticida para outros, quase ninguém mais se lembra
dos idos de 37.
Dessas observações, não quero extrair nenhum juízo de valor. Contento-me em assinalar mais uma vez, e
não me parece pouco, que reconhecer
diferenças culturais é uma boa forma
de promover uma desejável aproximação.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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