São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 2002

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ANTONIO DELFIM NETTO

Um crítico tardio do mercado

Em Guayaquil, no Equador, o presidente Fernando Henrique Cardoso disse algumas verdades que, se ele tivesse levado a sério desde 1993, quando foi ministro da Fazenda de Itamar Franco, o Brasil estaria em situação muito diferente. Atentemos para elas:
1. "Não há razão para que se acredite que, no futuro, não se possam manter, seja quem for o presidente eleito, os nossos fundamentos econômicos, porque eles estão apoiados na vontade geral da sociedade". É claro que é sempre discutível saber o que são os "fundamentos econômicos" e muito mais ainda se eles derivam mesmo da "vontade geral da sociedade", mas a proposição é perfeitamente aceitável diante do quadro institucional consolidado que foi construído a partir da Constituição de 1988. A prova disso é que foram defenestrados, dentro da lei, vários membros do Legislativo e um presidente sem o menor problema institucional. É de concluir-se, portanto, que há uma precipitação dos mercados quando crêem que alguns dos candidatos não vão manter aqueles "fundamentos".
2. "Não há mecanismos capazes de rebater certas pressões que vêm do mercado financeiro e destroem, em pouco tempo, o que se levou anos para construir". Afirmação correta, mas surpreendente para quem organizou um governo com a premissa de que o Estado sempre erra e que o mercado sempre resolve com eficiência qualquer problema. O que não se disse é que a "construção", quando feita com o apoio da ampla liberdade de movimento de capitais e com o uso excessivo de poupança externa, como nos últimos oito anos, é sujeita a fortes abalos sísmicos e não tem alicerces adequados!
3. "Os fundamentos da economia brasileira são os melhores possíveis. Isso é reafirmado por todos -pelo FMI, pelo Banco Mundial e por economistas do mundo inteiro. E, não obstante, os mercados não prestam atenção a isso. Ficam prestando atenção ao que poderá acontecer eventualmente no futuro se, se e se...". Certamente, dizer que nossos fundamentos são os melhores possíveis e ao mesmo tempo ter de ir às pressas ao FMI, pela terceira vez em quatro anos, é um exagero. O lamento do presidente é perfeitamente compreensível, mas ignora o fato sempre lembrado por sua equipe econômica de que o "mercado sabe o que faz e olha para a frente". Logo, deixemo-lo sossegado...
A proposição nš 1 é uma resposta definitiva para aqueles que não entendem (ou preferem ignorar) que as duas instituições básicas do capitalismo democrático, o "mercado" e a "urna", se corrigem mutuamente num aperfeiçoamento contínuo: o "mercado" pune o excesso de voluntarismo do poder incumbente criado pela "urna", e a "urna" corrige, pela substituição do poder incumbente, o "excesso" de mercadismo. Por mais poderoso que seja o "mercado", a "urna" dificilmente será sua serva.
O grande paradoxo é que o discurso do intelectual Fernando Henrique Cardoso aproxima-o mais de alguns dos críticos que o admiram do que do "mercadismo" que infeccionou o seu governo. O velho sociólogo redescobriu, tardiamente, que o povo e a nação valem mais do que o mercado. Ele sempre soube disso, mas esqueceu no governo...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br



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