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São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A democracia, a liberdade e as notícias

JOÃO PAULO CUNHA

"Nesta semana lembrei-me do velho problema insolúvel. Com os olhos pensativamente postos no chão, repeti o monólogo de Hamlet, perguntando a mim mesmo o que é que nasceu primeiro, se a baixa do câmbio, se o boato. Se ainda tivesse a antiga astúcia, diria que primeiro nasceram os bancos."
Machado de Assis

A epígrafe acima foi extraída de um texto de Machado de Assis publicado no dia 10/2/1895, na "Gazeta de Notícias". Machado era um cronista da política de seu tempo. Já no século 20, discorria sobre a influência dos boatos e das meias-verdades na rotina nacional e sobre o peso e o espaço que esses deslizes tinham na imprensa brasileira.
Vale revisitar um texto secular para analisar os dias de hoje. Somos convidados a agir como protagonistas da história, mas relutamos em encarar a contemporaneidade porque miramos o país pelo retrovisor. Boatos grassam no mercado financeiro e o câmbio continua a flutuar, seja ao sabor de boatos ou não. Placidamente, o setor financeiro se mantém campeão de lucratividade.
Há 20 anos, fomos às ruas lutar pelo direito de voltar a eleger presidentes. Há 11 anos, o Congresso respondeu às denúncias de corrupção contra o presidente da República e promoveu o primeiro impeachment registrado na história. Há 10 anos, nosso Parlamento apurou desvios na Comissão de Orçamento e cassou sete deputados, obrigando outros 12 a renunciar. Há nove meses, testemunhamos um dos mais maduros processos de transição de poder do hemisfério Sul. Em 180 dias, o governo Lula inscreveu o compromisso de debelar a fome como o maior de sua agenda. Há três semanas, para espanto dos céticos, com significativa ajuda da oposição, aprovou-se em primeiro turno a reforma da Previdência.
A despeito dos pessimistas incuráveis, o Brasil constrói o próprio modelo de desenvolvimento. Sem resignação ante as dificuldades, políticos e administradores públicos dão lições de dedicação e perseverança. Fechar os olhos a essa realidade é um retrocesso. Sonho com o regresso do saudável debate político e ideológico às tribunas. Rechaço udenismos puritanos que enxergam vícios nos caminhos que buscam virtudes e nos modelos usados para aperfeiçoar o Estado democrático de Direito.
Há uma semana, a Folha dedica-se a pesquisar possíveis irregularidades nos Cargos de Natureza Especial (CNEs), da Câmara dos Deputados. Os CNEs surgiram há 11 anos, para permitir que os deputados federais, os órgãos de direção da Câmara, o Conselho de Ética, a Ouvidoria Geral, as lideranças partidárias e as comissões da Casa prestassem melhores serviços aos cidadãos. Esses cargos, de livre provimento, não requerem concurso público e não pertencem aos deputados, pertencem ao Parlamento.
Quando há troca de presidente na Câmara ou mudança nas comissões do Legislativo, quando há troca de deputados nos cargos na Mesa Diretora ou quando ocorre substituição de líderes, trocam-se os CNEs, para que os novos detentores dos cargos formem suas equipes com técnicos de sua confiança. É por isso que os CNEs prescindem de concurso: para que um político leve a determinados postos as pessoas com que tem afinidade ideológica. Afinal, políticos com mandato no Parlamento perfilam-se em torno de projetos partidários.


Parcela da mídia brasileira entabula um debate pouco sereno acerca dos avanços institucionais que obtivemos


Nesta última década, a cada nova eleição de presidente da Câmara, o número de CNEs crescia à ordem de 10%. Elegi-me em fevereiro deste ano e mantive meu compromisso: estanquei esse crescimento. Até o dia 14 de agosto, quando redigi este artigo, havia 1.954 funcionários ocupando cargos de natureza especial na Câmara. No dia 8/8, quando a Folha encerrou a apuração da primeira reportagem sobre o tema, eram 1.965. A flutuação, nove funcionários a menos no intervalo de seis dias, deve-se ao "turn over" natural em empresas ou repartições e revela como são frágeis os raciocínios absolutos acerca de realidades que requerem sofisticação analítica.
A Câmara tem 513 deputados, 3.474 funcionários efetivos -ou seja, concursados- e 1.954 funcionários contratados em CNEs. Desde 1982 o número de funcionários efetivos da Casa varia no máximo 5% para cima ou para baixo. Há uma demanda por novos servidores e a Câmara fará concursos para atendê-la. Os funcionários contratados em CNEs ajudam-nos a cumprir as funções parlamentares e são essenciais na execução de missões públicas por delegação; somos os representantes da sociedade brasileira e estamos encarregados de produzir leis e decisões que aprimorem o arcabouço jurídico e administrativo do país. Esse é o caminho que porá fim às desigualdades que nos assolam.
Deputado federal trabalha muito. A celeridade com que apreciamos e estamos votando as reformas que a sociedade reclama são prova disso. Há, hoje, 18.132 proposições tramitando na Câmara. Todas têm de ser lidas, debatidas e precisam de parecer técnico. Para isso, é necessário pessoal qualificado e, muitas vezes, politicamente afinado com os deputados. Até o fim do ano, irão se somar a essas proposições as dezenas de milhares de emendas ao Orçamento da União. Entre fevereiro e julho deste ano, foram realizadas 550 reuniões nas comissões permanentes e temporárias da Câmara, por onde passaram 1.200 depoentes. O plenário fez 125 sessões deliberativas e apreciou 281 matérias -entre elas a reforma da Previdência, a regulamentação do art. 192 da Constituição e um conjunto de leis que melhora o sistema público de segurança.
É justo dizer que deputado trabalha pouco? É correto afirmar, como a Folha fez nas entrelinhas de seus textos, que os Cargos de Natureza Especial servem à execução rasteira do "franciscanismo" na política?
O Legislativo federal é a mais transparente instituição brasileira. No site da Câmara (www.camara.gov.br), qualquer cidadão pode consultar em tempo real o trabalho dos deputados. É possível saber, diariamente, quem apresentou que proposta e em qual comissão. Mede-se o desempenho parlamentar de cada deputado. Tem-se acesso à rotina administrativa e legislativa da Casa e a qualquer discurso pronunciado. Consultam-se todos os contratos da Câmara. A TV Câmara, transmitida via cabo ou parabólicas, transmite as sessões e reuniões ao vivo e promove debates em que todos os pontos de vista são democraticamente expostos e analisados. Por que acusar a Câmara e os deputados de falta de transparência e obscurantismo?
Assacar contra a legitimidade da atividade parlamentar, usando para isso distorções de informações públicas e análises parciais da legislação que rege o funcionamento do Parlamento, não serve à democracia. Obscurecer e relativizar, cotidianamente, a produtividade e o desempenho do Legislativo não é um exemplo de comportamento midiático.
Parcela da mídia brasileira entabula um debate pouco sereno acerca dos avanços institucionais que obtivemos nas duas últimas décadas e sobre quais os mecanismos apropriados para o desempenho legítimo da atividade política. Quero entrar nesse debate, mas a melhor maneira de o fazer não é curvando a instituição que represento a agendas e a dilemas que não são nossos, que não significam a modernidade e que turvam a qualidade da discussão.
O debate sobre os CNEs não é uma agenda da Câmara, não é pauta da sociedade, não é um dilema institucional nem pede soluções de continuidade. Temos de superar esse tema, sob o risco de, daqui a cem anos, um cronista usar os textos da Folha sobre os Cargos de Natureza Especial da Câmara para injustamente decretar: "Nada mudou".

João Paulo Cunha, 45, deputado federal pelo PT-SP, é o presidente da Câmara dos Deputados.


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