São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O Mercosul e os interesses do Brasil

RUBENS ANTONIO BARBOSA


O Brasil tem capacidade de liderar um processo de reconstrução do Mercosul, em que seria reafirmada a vontade política inicial

A campanha presidencial tem suscitado uma muito bem-vinda discussão sobre temas da política externa e da inserção internacional do Brasil, entre os quais se destaca, certamente pela sua importância, o do Mercosul.
Como um dos negociadores desse processo de integração desde o seu início, no começo dos anos 90, até fins de 1993, ex-representante oficial do Brasil no Grupo Mercado Comum, a instância executiva do Mercosul, e um dos responsáveis, portanto, por algumas das decisões tomadas durante a fase de transição, tenho observado que tal debate nem sempre tem transmitido à população, e aos empresários em particular, o significado abrangente e a dimensão estratégica desse projeto de mercado comum para a economia nacional e a política internacional do Brasil.
Temos de ser realistas e considerar esse processo tanto pelo lado de seus "ganhos estruturais", transformadores de nosso relacionamento externo e da própria organização econômica nacional, como pela vertente de suas dificuldades conjunturais, muito mais dos países-membros do que do próprio Mercosul.
Ao cabo de mais de 11 anos de vigência, a pergunta que deve ser feita, nesta fase de crise dos países-membros e do Mercosul, é se o processo de integração regional poderá ser um instrumento relevante para o Brasil, no contexto de seu interesse nacional e de sua inserção no mundo globalizado.
Minha avaliação é que sim, com algumas qualificações, o que é, aliás, reconhecido pela maior parte da sociedade brasileira -empresários, empregados, líderes sindicais, observadores acadêmicos e responsáveis políticos, sem falar dos próprios diplomatas, habilitados a comparar os vários experimentos integracionistas conhecidos em um momento da história mundial que se caracteriza atualmente pelos dois processos paralelos: globalização e regionalização.
Como conhecedor "interno" do Mercosul, não poderia deixar de manifestar meu entendimento de que seus instrumentos básicos -tanto o Tratado de Assunção, de 1991, como o Protocolo de Ouro Preto, de 1994-, que apenas o reformularam institucionalmente, sem mudar a natureza do processo integracionista, permanecem válidos em sua essência; muito embora eles possam, e talvez devessem (na perspectiva da Alca), passar por uma reformulação maior, a ser negociada conjuntamente pelos quatro membros plenos e os dois países associados ao Mercosul (Chile e Bolívia), como forma de adaptar sua arquitetura institucional aos requerimentos da nova realidade hemisférica.
Jean Monet, o grande inspirador e incentivador do processo de integração europeu, em situação mais grave do que a que hoje afeta o Mercosul, vivida pelo então Mercado Comum Europeu, na década de 60 e início dos anos 70, conseguiu manter forte a vontade política dos países-membros em prosseguir nas negociações, não por meio de avanços no campo comercial, mas através de importantes gestos simbólicos em outras áreas de interesse comum.
Creio que o exemplo europeu é pertinente. O Brasil tem capacidade de liderar um processo de reconstrução do Mercosul, em que seria reafirmada a vontade política inicial e reconhecido o alcance das limitações conjunturais que as realidades econômicas e políticas dos países-membros impõem. Tudo isso com avanços graduais, por meio gestos que dêem certeza de continuidade do processo de integração para os operadores econômicos internos e externos.
Esses gestos simbólicos, possíveis e desejáveis -não necessariamente na área comercial, enquanto as economias dos países-membros, em especial a da Argentina, estiverem sob pressão-, seriam importantes para defender o capital político interno e externo acumulado pelo Mercosul nos últimos 11 anos.
Em 2002 foram tomadas algumas decisões nessa direção: a simplificação do mecanismo de solução de controvérsias, o restabelecimento do mecanismo de coordenação com os EUA, a assinatura do acordo automotriz e o restabelecimento do CCR, o acordo de créditos recíprocos em vigor na Aladi (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração).
Entre outras medidas simbólicas, que demonstrariam a vontade política dos quatro países em levar adiante o processo de integração do Mercosul, penso que poderiam ser lembrados:
O reforço e a ampliação do mecanismo de coordenação macroeconômica;
O reexame da questão da Tarifa Externa Comum, reconhecendo uma situação de fato;
A conclusão das negociações e a assinatura do acordo Mercosul-Comunidade Andina até o final de 2002, a continuidade das negociações com a União Européia e, em um contexto regional mais amplo, a manutenção da reunião de presidentes da América do Sul e o apoio para novo encontro em 2003;
A negociação de uma nova arquitetura institucional para o Mercosul, por meio da reestruturação dos atuais documentos básicos -o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto. De conformidade com o artigo 47 deste protocolo, o Brasil apresentaria a seus parceiros proposta de reflexão conjunta sobre uma nova arquitetura institucional para o Mercosul, com o objetivo de lograr certos acordos para 2005, quando novas realidades comerciais poderão ser desenhadas no plano hemisférico.
Essa nova arquitetura institucional, a ser necessariamente objeto de um novo instrumento diplomático, confirmaria as metas integracionistas dos fundadores do Mercosul, mas apresentaria uma certa flexibilidade evolutiva, suscetível eventualmente de acomodar situações que hoje causam tensão no bloco.
Do ponto de vista do interesse nacional, o importante é que, qualquer que seja o grau de liberalização comercial e de cobertura setorial de uma futura (e ainda incerta) integração hemisférica, o Mercosul precisa ser preservado, de modo a manter a identidade política do Cone Sul no plano internacional, a continuidade das negociações com a União Européia e a permitir esforços negociais positivos com outros esquemas integracionistas. Com isso, o Mercosul estará mais equipado e preparado para enfrentar o desafio da Alca em 2005.
O Tratado de Assunção (que criou o Mercosul) seria emendado pela primeira vez e transformado em uma espécie de "Constituição para o Mercosul". O novo tratado, a exemplo do que ocorreu com o Mercado Comum Europeu nas décadas de 60 e 70, ficaria reforçado por compromissos existentes e em curso de negociação sob a forma de protocolos setoriais, que consolidariam uma abordagem progressiva do projeto de mercado comum regional.
Entendo que esse trabalho deveria começar de imediato, para que, no segundo semestre de 2004, quando o Brasil assumir novamente a presidência pró-tempore do bloco, esta possa ser coroada com a finalização de uma nova etapa, institucionalmente mais sólida, do processo de integração. Se isso não for feito, corremos o risco de perder a capacidade de iniciativa e de sermos comandados por projetos estranhos aos nossos interesses nacionais e sub-regionais.

Rubens Antonio Barbosa, 64, é embaixador do Brasil em Washington. Foi coordenador nacional do Mercosul (1991-93) e embaixador no Reino Unido.



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