São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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A crônica da morte anunciada

JACOB PINHEIRO GOLDBERG


As autênticas mudanças históricas que transfiguram a civilização independem de bravatas e se ancoram no coloquial

O primeiro turno das eleições girou em torno da economia. O segundo deve girar em torno da psicologia e da filosofia. Quem somos e o que pretendemos. Ultrapassagem do quanto e o espaço do quando e do sentido. Para alguns, a eleição de Lula é o apocalipse vermelho, como se Aloizio Mercadante não fosse, abrindo meu voto num debate radiofônico, a soma da ética com a estética. Para outros, a eleição de Serra, a continuação do governo pálido de FHC, como se a democracia não tivesse consolidado uma conquista extraordinária de pluralismo, este sim de Primeiro Mundo.
A sensação de ansiedade, traço de paranóia, alimentada pela especulação e pelo aventureirismo, mas também pelas máscaras criadas pelos marqueteiros, joga na fantasia e na ambiguidade o futuro ideológico e político. Teorias conspiratórias fazem com que o bicho-papão seja nosso pastor. O FMI ou Che Guevara, como se a extraordinária identidade nacional mergulhasse num vazio dependente da aprovação do risco Brasil, o boletim que o menino travesso precisa exibir para o Merryll Lynch.
Um povinho de periferia, conduzido e apavorado por Fernandinho Beira-Mar, como se fôssemos a escória da Terra, dependendo do capital estrangeiro para continuar nessa miséria insuportável que assalta as crianças famintas nas esquinas da bandidagem. O lixo do luxo que se espelha na coluna social, o cinismo niilista que decreta nossa covardia.
Machado de Assis não nasceu em Miami, Guimarães Rosa não passava bronzeador na Cote d'Azur. O nosso "melting pot" é o mais precioso do planeta. Baiano e italiano, vascaíno, corintiano.
Pois que, no salto vertical das estatísticas e das bolsas de valores e muito para além dos arranjos negocistas dos partidos de ocasião trocando cargos futuros, lembrando infantes "batendo figurinhas", comprometendo e corrompendo, um traço revolucionário.
A revolução dos sonhos resgatados.
José Serra, Zé Mané que chegou onde chegou, ora vejam. O moço da UNE que, provavelmente, nas noites de insônia imagina uma nação que assegure um mínimo de dignidade na sobrevivência dos seus pares, nós, desde o rico que não quer viver no bunker do carro blindado ao pobre desempregado.
Luiz Inácio Lula da Silva, o metalúrgico que sacudiu a poeira e deu a volta por cima e não depende de aval para se imaginar celebrando um pacto nacional, sem medo e sem ódio.
As autênticas mudanças históricas que transfiguram a civilização independem de bravatas e se ancoram no coloquial, na reza do silêncio, na sutileza do olhar. Esta é uma colocação negra. Aquela do libertário anarquismo individualista, que numa contracorrente ofereceu um 1,5 milhão de votos a alguém que grita seu nome, na confusão da barbeiragem.
O "eu" que reclama sua hora e vez é do Zé Ninguém de Reich, pleiteando a consciência do eleitor e do eleito.
Voltando de Paris, após a Copa, declaro que perdemos diante da "Marselhesa", e não das chuteiras. Cito Napoleão, que com esse hino e 5.000 homens derrota 50 mil inimigos.
Boris Casoy me interroga. O que fazer? Respiro e inspiro. "Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil". Temos dois atores, capazes de grandeza ou redução ao bizarro. Façam seu jogo.

Jacob Pinheiro Goldberg, 68, advogado e assistente social, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e autor de "Monólogo a Dois" e "Psicologia da Agressividade".



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