|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Estas pequenas coisas
RIO DE JANEIRO - Consumado
(e assumido) espírito de porco, adoro remar contra a maré e embarcar
em canoas furadas. Em matéria de
cinema, por exemplo, acredito que
seja o único a não gostar de "Quanto
mais Quente Melhor", do Billy Wilder. Mas credito a ele duas obras-primas: no drama, o genial "Crepúsculo dos Deuses"; na comédia, o
melhor filme italiano feito fora da
Itália, "Avanti". Quanto mais o tempo passa, mais gosto de Billy Wilder.
O mesmo se dá com Deborah
Kerr, falecida nesta semana. Para a
cultura massificada da plebe, sua
grande cena é o beijo de "A Um Passo da Eternidade", de 1953, ela e
Burt Lancaster rolando entre as ondas que se quebram numa praia deserta. Só no bravo cinema nacional
já vi umas duzentas cenas parecidas
e eventualmente melhores.
Mais erótico, terrivelmente sensual, é o papel de freira que ela faz
em "Narciso Negro", de 1946. Eu
havia saído do seminário, casto como uma donzela de teatro infantil.
A atmosfera do filme era o vento e o
convento no alto de um penhasco.
Fiquei perturbado com os closes do
rosto aparentemente frio de Deborah, então jovem. Saí do cinema
acreditando que descobrira o que
era uma mulher.
Mais tarde, outro choque do que
pode haver dentro da mulher, de
qualquer mulher. "Vacation from
Marriage", com Robert Donat, filme inglês, o casal enfadonho que se
separa durante a Segunda Guerra
Mundial, cada qual indo para um
front diferente. A metamorfose de
Deborah Kerr é toda calcada em pequeninos detalhes que fazem brotar, no corpo de uma esposa envelhecida pelo tédio, a amante dilacerada pelo amor e pelo desejo. Para
prolongar as esperas, ela canta baixinho um sucesso de outros tempos, "These Foolish Things".
Foram pequenas coisas que a fizeram grande e inesquecível.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: O ET do governo Próximo Texto: Antônio Ermírio de Moraes: Energéticos: desperta, Brasil! Índice
|