São Paulo, segunda, 21 de dezembro de 1998

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A Renault, o Paraná e as mentiras



Pensei em dizer que o governador "faltou com a verdade"; relendo o artigo, às favas com as cerimônias: Lerner mentiu
ROBERTO REQUIÃO

No último dia 11, o governador do Paraná, Jaime Lerner, preencheu todo este espaço, aventurando contestar editorial da Folha de 6/12 ("Mão visível na indústria") e todas as denúncias e críticas à instalação da montadora Renault em São José dos Pinhais (PR).
Em respeito à liturgia e às mesuras devidas ao cargo, pensei em dizer que o governador "faltou com a verdade". Mas, lendo e relendo o artigo, às favas com as cerimônias: Lerner mentiu. Não há eufemismo que encubra ou atenue a impostura. Mentiu quando afirmou que "não há desembolso, não há renúncia fiscal, não há nada de desvantajoso (...) na negociação da Renault".
Há tudo isso e muito mais no acordo secreto assinado entre Lerner e a Renault em março de 1996. Até hoje, formalmente secreto: o que se revelou foi uma versão obtida pelo PMDB do Paraná. Não sabemos se ela é completa e final nem se há acréscimos, desses tão comuns em acordos públicos e ainda mais perigosos em protocolos sigilosos.
Vamos às contas e aos compromissos assumidos por Lerner em nome dos paranaenses. O governo do Estado (isto é, nós, mesmo que Lerner entenda a coisa pública como sua) participa com 40% do investimento (US$ 300 milhões em ações). Compromete-se a emprestar à montadora US$ 1,5 bilhão por dez anos, sem juros nem correção. Renuncia ("dilata", no eufemismo do governador) a US$ 1,4 bilhão em impostos não recolhidos. Doa o terreno para a fábrica (US$ 2,2 milhões), a terraplenagem e obras afins (US$ 18 milhões), uma subestação de energia (US$ 15 milhões), um desconto de 25% no consumo de energia elétrica, um terminal exclusivo (construído a expensas do Estado) no porto de Paranaguá, todo o tratamento de efluentes e obras correlatas (o governador "ecológico" construiu a montadora em área de mananciais) e a construção de acessos rodoviários e ferroviários à empresa. A soma disso que Lerner escreve (e assina!), afirmando que "não é desembolso nem renúncia", ultrapassa US$ 4 bilhões.
Se ele despreza isso como prova da doação insensata e criminosa, vamos ao balanço da própria Renault ("Diário Oficial" do Paraná, 20/4/1998). Então lá os milhões de reais já repassados por Lerner à montadora, em 96 e 97, a título de empréstimos por dez anos, sem juros nem correção, como gosta de revelar a Renault (nota 10 do balanço).
O balanço também desmente o governador quanto ao chamado "ICMS novo". A Renault esclarece que recebia benefícios fiscais mesmo antes da inauguração (nota 11). Que desgraça para o governador que o balanço não possa ser secreto, como o acordo...
Lapso revelador: em seu artigo, Lerner fala em "famigerados incentivos" ao defendê-los. Tem razão, é o que são: famigerados, em seu pior sentido.
Mas não fica por aí o pouco respeito do governador para com a verdade e o discernimento dos leitores. Ele diz que a Renault poderá gerar até 90 mil empregos indiretos. Nem a montadora francesa ousou tanto. No material institucional divulgado às vésperas da inauguração, ela "comemora" a criação de 12 mil empregos, diretos e indiretos. Quando o presidente instituiu o "regime automotivo brasileiro", justificando tantas concessões às montadoras multinacionais, afirmou que as duas dezenas de "fábricas" que seriam atraídas gerariam 28 mil empregos. Lerner, com uma só, fala em 90 mil.
Em anúncios de páginas e filmes publicitários de um minuto, veiculados à demasia antes da eleição, Lerner proclamava (sem corar) que a Renault iria criar 480 mil empregos no Paraná! Era sua "pièce de résistance" para tentar anular o escândalo que a publicação dos protocolos secretos causou. O governador não mede o tamanho da patranha quando busca justificar-se.
O Ipardes (instituto de estudos e pesquisas econômicas do governo estadual) calculou que todas as montadoras que Lerner generosamente abrigou no Paraná não devem gerar mais que 4.600 empregos diretos e 16,5 mil indiretos quando funcionando a plena carga. Mais: segundo o instituto, todos os "investimentos" (aspas minhas; as montadoras não estão investindo nada) não chegarão a US$ 4,7 bilhões. Lerner não deixa por menos: diz que são mais de US$ 15 bilhões. De todo modo, eis o número que o governador pretende doar às empresas mais ricas do mundo, que são as montadoras.
O delírio do arquiteto não fica por aí. Vamos a mais duas afirmações exemplares de seu artigo. Logo na abertura do pasticho, ele garganteia que a história do Paraná se divide em duas partes: antes e depois da Renault. Não satisfeito com o desvario, arremata: "A fábrica da Renault no Paraná é um contraponto ao cenário de crise que domina o imaginário brasileiro". Santo Deus!
Ele disparata que o Paraná venceu a crise com uma única montadora (que insiste em chamar de "fábrica"), logo quando, como afirma o editorial da Folha, "(...) o setor automobilístico vive um dos seus piores momentos, praticamente liderando a recessão mundial".
A Chrysler, também atraída por Lerner com as vantagens que conhecemos, nem inaugurou sua fábrica no Paraná e já anuncia suspensão da produção e férias coletivas. A Volvo põe na rua centenas de operários e anuncia corte profundo na produção de caminhões e ônibus para 99, já que os resultados de 98 foram pífios. Nos pátios de todas as montadoras pelo Brasil afora, acumulam-se milhares de carros sem compradores. Será que nem o exemplo asiático, também citado pela Folha, é capaz de despertar Lerner da alucinação?
A segunda afirmação refere-se à energia elétrica. Demonstrando pouco conhecimento da realidade que diz governar, culpa as tantas hidrelétricas construídas no Paraná por "atraso", imobilismo e crise. É certo que as usinas inundaram terras e que há distorções em seu preço. Mas mais certo é que a abundância em energia permitiu ao Paraná diversificar e modernizar a agricultura e a indústria. Energia, estradas, porto, um povo trabalhador (menor índice de falta ao trabalho no país) e a localização geográfica foram diferenciais vantajosos que o Paraná sempre ofereceu para atrair investimentos.
Aliás, as montadoras, além das citadas mamatas, também escolheram o Paraná pela oferta à vontade de energia elétrica. Uma energia de que a Renault vai desfrutar, com 25% de desconto.
Nem é muito prudente Lerner falar em energia elétrica. Afinal, está queimando a Copel (estatal estadual do setor mais lucrativa do país, com receita de US$ 1 milhão/dia) para cobrir rombos nas contas públicas e no Banestado (empréstimo de R$ 4,75 bilhões para "saneá-lo") e para cumprir os repasses secretamente assumidos com as montadoras. Essa é a verdade sobre a Renault, o Paraná e o governador.
Não há como se insurgir contra os fatos. Eles, por si, por sua própria e inevitável dinâmica, atropelam a fantasia, o delírio e a mentira, impondo-se. É a mão visível da história pregando peças naqueles que teimam em desprezá-la.



Roberto Requião, 57, advogado, é senador pelo PMDB-PR. Foi governador do Estado do Paraná (1991-94), secretário de Desenvolvimento Urbano (1989) e prefeito de Curitiba (1985-88).





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